19 janeiro 2010

Semelhanças, Diferenças, Alianças. (O caso da decisão suíça sobre os Minaretes na visão do teólogo Paulo Suess)

Semelhanças, diferenças, alianças.
Religião na Europa e América Latina a partir de um plebiscito suíço sobre a construção de minaretes


Por Paulo Suess*

A Suíça é famosa pelo sigilo de seus bancos e pela precisão de seus relógios. Recentemente, esse país, com seus 7,7 milhões de habitantes, chamou a atenção mundial não por causa de um escândalo bancário ou por causa do atraso de um de seus reológicos, mas por causa de um plebiscito sobre a construção de minaretes (29.11.2009). O minarete é a torre de uma mesquita de onde os muezins chamam os fiéis muçulmanos para a oração. A grande maioria dos cerca de 350 mil muçulmanos suíços são migrantes da antiga Iugoslávia e da Turquia. De mais de 100 mesquitas naquele país, apenas quatro têm minarete – 57,5% dos eleitores, votaram pela proibição da construção de outros minaretes. Pesquisas de opinião mostraram que também em outros países europeus o resultado de uma consulta popular teria sido semelhante. Portanto, o que aconteceu na Suíça não representa um comportamento isolado. Ignorância e intolerância, que confundem o Islã com Al Qaeda e Talibã, se somaram ao medo de uma islamização do país, da perda da identidade cultural e da laicidade política. Por motivos diferentes, o governo suíço, o Vaticano, igrejas evangélicas e bispos católicos, setores da sociedade civil e de partidos políticos de esquerda se expressaram a favor da construção de novos minaretes. Em vão. As instituições políticas, religiosas e civis, com seus comunicados de opinião politicamente corretos, perderam o contato com o povo.

Face ao islamismo e a outras religiões não cristãs, os sinais emitidos pelo setor hegemônico da Igreja Católica quase sempre foram ambivalentes. Ainda estamos lembrados da aula polêmica de Bento XVI, na universidade de Regensburg (12.9.2006). Estamos também lembrados do discurso de abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Aparecida (13.5.2007), no qual o papa afirmou que a conquista das Américas trouxe para os povos indígenas “o Deus desconhecido” e que o anúncio do Evangelho “não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha”. Nos dois casos, para apagar o incêndio que causaram, se gastou mais água do que para batizar os poucos neófitos que ainda querem acolher o mistério. Ao falar de violência e intolerância, a Europa cristã de todas as denominações não precisa pescar nas águas turvas de outras religiões.
Os minaretes advertem para mudanças das sociedades européias pela migração de pessoas que vêm de outras culturas e regiões em busca de trabalho e que estão dispostas a viver a integração na sociedade acolhedora sem assimilação cultural e religiosa. Convidar trabalhadores ou permitir a migração dentro da União Européia não significa importar máquinas. Pessoas migram com suas culturas e religiões, que são visíveis e lhes permitem viver sua identidade.


A Suíça é um país pequeno da Europa, e a Europa é um pequeno pedaço do planeta Terra. Mas, no mundo globalizado, idéias, economias e processos organizacionais perderam a sua territorialidade. O mundo norte-atlântico continua dominando as economias mundiais e as ideologias globais. No caso da Igreja Católica, ela monitora as igrejas da Ásia, África e América Latina e Caribe segundo os padrões culturais europeus. Esse monitoramento produziu uma homogeneidade teológica, ministerial e administrativa de seminários, paróquias e liturgias. Ao mesmo tempo existem, em níveis considerados secundários, nichos culturais de grande diversidade e relações inter-religiosas amigáveis. Esses não são o resultado da exploração da mão-de-obra de imigrantes, mas da própria convivência colonial, que produziu um intercâmbio permanente entre religiões indígenas, afro-americanas e cristianismos. Juntos com novas religiões e confissões de imigrantes e com a secularização e a urbanização, desconstruíram a imagem da homogeneidade do continente católico.
Hoje, na maioria dos países latino-americanos, com seus 4 milhões de muçulmanos, ou no Brasil, com um milhão deles espalhados por todo o território nacional, seria impossível pensar num plebiscito vitorioso contra a construção de minaretes ou algo semelhante. O povo latino-americano incorporou como hábito constitucional de sua vida o “jogo de cintura”, que é uma forma de tolerância light, que não se pronuncia sobre “verdade” ou “inverdade” da doutrina tolerada. A diferença com a Suíça está na maior liberalidade do povo latino-americano, que herdou a alquimia de sua sobrevivência dos índios e dos africanos colonizados. A sobrevivência é um bom motivo para a tolerância dos subalternos.


Onde há vida humana, existem símbolos. Quantos símbolos religiosos uma sociedade secular consegue suportar sem abandonar seu estatuto laico, que na sociedade plural é algo positivo porque garante a paz entre as religiões, essa paz que religiões hegemônicas ameaçam? A tendência da política cultural da Europa secularizada e laica aponta para a progressiva proibição dos símbolos religiosos. O nome de “Deus” não consta mais na Constituição da União Européia (UE) e nas Constituições dos 27 países-membros da UE, só em cinco deles aparece a palavra “Deus”. Por ordem judicial, cruzes e imagens religiosas já desapareceram de escolas e prédios públicos na maioria dos países. Pode-se, nos países pluriculturais e multireligiosos, considerar o crucifixo na parede de uma escola ou repartição pública favorecimento de uma religião sobre outra? Pode-se proibir o véu das muçulmanas que são professoras nas escolas da rede pública?
Com a globalização, essas questões chegaram também aos portos da América Latina. No Brasil, a questão do estatuto público dos símbolos religiosos emergiu, não numa peleja entre minaretes e torres de catedrais, mas entre religião como tal e laicidade, entre vida pública e privada. O Conselho Nacional da Justiça (CNJ), na sessão de 29 de maio de 2009, indeferiu quatro pedidos de retirada de símbolos religiosos das dependências do Poder Judiciário. O CNJ alegou que os crucifixos e outros objetos constituem símbolos da cultura brasileira e não interferem na imparcialidade da Justiça. Já o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado pelo presidente Lula, dia 21 de dezembro de 2009, prevê ao lado de “mecanismos que assegurem o livre exercício das diversas práticas religiosas” impedir “a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União”. O Estado Brasileiro não é confessional, mas tampouco é ateu, como se pode deduzir do preâmbulo da Constituição, que invoca sem constrangimento a proteção de Deus. É difícil distinguir entre vida pública e religião privada, como mostra a proposta da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, de julho de 2009, que propõe a retirada dos símbolos religiosos de locais de amplo acesso e de atendimento ao público, nos prédios públicos federais do Estado de São Paulo, desde que respeitada a manifestação da fé dos servidores públicos, em suas mesas e gabinetes. Segundo essa proposta, o juiz pode colocar uma estátua de Nossa Senhora de Aparecida na sua mesa de trabalho, mas não pode permitir que uma imagem de Nossa Senhora de Guadalupe ou uma cruz adorne a parede do Tribunal de Justiça.


Os processos de racionalização cultural produziram um mundo desencantado (Max Weber) e a diferenciação funcional das antigas unidades familiares pelos processos de trabalho e organização divididos em esferas de política, economia e direito. A religião se tornou uma dessas esferas entre outras e perdeu sua hegemonia (Emile Durkheim). Os dois processos, a racionalização como desencantamento do mundo e a diferenciação em esferas funcionais separadas, destituíram a religião globalmente do trono de sua soberania.
Nas sociedade modernas européia e latino-americana, diminuiu o fundo de valores coletivamente partilhados, mas um núcleo de valores fundamentais é necessário, para garantir a integração social dos cidadãos. Assim, as religiões ressurgiram em novas configurações de um mundo pós-secular. Elas têm futuro, porque a transcendência, seu campo próprio, que faz transcender a dimensão pulsional, é uma qualidade essencial do ser humano. As religiões têm futuro porque em seu conjunto são a instância que, num mundo de contingências, relativismos e gozo total, são capazes de não só dizer, com Freud e Lacan, que a interdição ao gozo funda a sociedade humana, mas que são também capazes de traduzir essa interdição em “compensações” através de imagens de esperança, sinais de justiça e ações de solidariedade.


“Futuro” e “interdição” apontam para novas formas de igrejas e organizações eclesiais, capazes de acolher a alteridade sem perder a própria identidade. O futuro não brota da interdição de minaretes nem das teologias do Terceiro Mundo. O futuro brota da interdição do escândalo da intolerância e do atraso da fome. Para essas tarefas, precisamos nos unir numa “cadeia produtiva” de construtores da solidariedade e da paz com os setores rebeldes e esclarecidos da Suíça, do Vaticano e do mundo. Quem é incapaz de reconhecer o estatuto teológico do continente latino-americano será também incapaz de reconhecer o dedo de Deus na religião do Outro e na construção de seus minaretes. Os cidadãos que forem incapazes de aceitar os minaretes dos fiéis muçulmanos serão um dia obrigados a aceitar os fuzis dos infiéis.

* Paulo Suess é  professor de missiologia no cíclo de pós-graduação no ITESP, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e presidente da Associação Internacional de Missiologia (LAMS).



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