Rita Segato critica o projeto hegemônico do estado brasileiro, apresentando o Suma Kawsay como alternativa
10/01/2012
Renato Santana
de Luziânia (GO)
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A antropóloga Rita Segato - Foto: Paul Walters |
O
registro de nascimento aponta como país a Argentina, mas como seu
conterrâneo, Ernesto Che Guevara, a antropóloga Rita Segato decidiu
assumir como nacionalidade a América Latina desde a juventude, quando
desembarcou no Nordeste brasileiro. Pelos sertões da Ameríndia
transformou-se numa estudiosa e intelectual respeitada em todo mundo.
Rita
é professora da Universidade de Brasília (UNB) e conhece de perto a
realidade dos povos indígenas das Américas. Sua prática antropológica
sempre se desloca ao encontro do outro e rechaça contatos antissépticos.
Talvez por isso, somada à capacidade de relacionar temas e perspectivas
teóricas, Rita hoje tenha grandes contribuições aos discursos
construídos sobre o Bem Viver – que ela chama de Bom Viver – no Brasil.
A
antropóloga faz profundas críticas ao modelo de desenvolvimento adotado
pelos governos populares eleitos na América Latina e aponta as relações
coloniais do Estado brasileiro.
Como a senhora vê o modelo de desenvolvimento adotado pelos governos da América Latina de origem popular?
Rita Segato –
A gente pensa que o mundo está dividido em dois grandes campos: o
socialista e o capitalista. Não estamos falando em termos de Guerra
Fria, mas nós pensamos que continuam existindo esses dois ideários
políticos. A liberdade do mercado e aquele que pensa que o mercado deve
ser controlado e que o social deve ter o primeiro lugar. Contudo, essa
visão ofusca a percepção de que o próprio campo socialista está dividido
em pelo menos mais dois. Tem um campo socialista desenvolvimentista,
eurocêntrico, e outro que vai apontando para a crise civilizatória geral
de todo o projeto eurocêntrico que estruturou um mundo de acordo com a
hierarquia colonial.
Temos que aprender a
enxergar que dentro das chamadas esquerdas existe uma mais voltada ao
bem estar social, mas que não difere muito da direita. É difícil
enxergar isso.
Na América Latina nós temos um
conjunto de governos que consideramos bons. São os melhores porque
tentam pensar conjuntamente em bloco, numa aliança continental:
Venezuela, Equador, Peru, Paraguai, Bolívia, Argentina e o Brasil. Um
bloco que nunca existiu antes, desse jeito.
Este é
um bloco mais sensível ao bem estar, mas que não consegue pensar a
possibilidade de uma transformação, de uma melhoria na situação do nosso
país fora do projeto eurocêntrico. Não há uma ruptura. Ficamos
ofuscados porque são governos de esquerda, mas essa novidade não é muito
profunda. Entraram para competir, participar da concorrência para
emergir como bloco dentro dos mesmos princípios e balizas do capitalismo
global. Não há uma reflexão profunda sobre a questão.
Qual o caminho possível para o Bem Viver construir sua retórica e fazer o enfrentamento do modelo adotado pelo bloco?
É
preciso se perguntar até que ponto o bloco está disposto a pensar em
gerar poderes e economias locais. Quando cheguei ao Brasil não conheci
São Paulo e Rio de Janeiro; fui direto para o Nordeste. Lá existiam
mercados e feiras regionais. As pessoas de uma determinada região se
organizavam e se autossustentavam. Caruaru (PE) é um exemplo. Essa visão
de crescimento dentro das normas do capital acabou com isso.
O
Bom Viver joga um papel importante porque estimula as pessoas a
obedecerem aos seus próprios projetos regionais, locais, comunitários.
Porque se a gente se abre para o projeto geral global, nos abrimos para
os desejos e formas de gozo globais e esses desejos e formas de gozo são
baseados no consumo e na sua forma de programação da vida. O
crescimento do Brasil se dá pela via do consumo, pela capacidade de se
consumir independente de como se constrói dos índices de qualidade de
vida e desenvolvimento humano.
No fundo, se
pensarmos nas pessoas, no senso comum, na mentalidade coletiva, o que se
mede do bem estar é o consumo. Aí se apresenta um grande problema. Vão
desaparecendo outras formas de felicidade. O Bom Viver significa
preservar outras formas de felicidade. Uma felicidade que esteja
relacionada nas relações entre as pessoas e não uma felicidade que seja
derivada da relação com as coisas. É isso que está acontecendo: a
coisificação das relações.
Vemos então uma crise de perspectiva crítica nesse cenário...
Exato!
Os discursos são bonitinhos, seja de (Hugo) Chávez , do Evo (Morales)
que passou por essa crise envolvendo TIPNIS. Nunca tivemos discursos
assim antes e então parece que entregamos tudo a eles, pois saberão o
que fazer. Mas esses governos estão se confundindo. Nessa confusão,
coloco uma grande responsabilidade na tentativa de hegemonização por
parte do Brasil. O Lula foi um presidente nacionalista. Ele nunca foi um
internacionalista. A proposta dele é que o Brasil hegemonize o bloco de
qualquer forma.
Com isso, o individualismo
cresceu no país. Em lugares muito remotos você via essas estruturas
coletivas intactas, funcionando e garantindo às pessoas uma forma de
viver, uma forma de felicidade. Coletividade significa que o umbigo está
dentro da comunidade e não se coloca para fora. O que se percebe é que o
umbigo se mudou do centro das comunidades para São Paulo e de lá para
Nova York.
Para mim, essa hegemonia brasileira
regional tem aprofundado estruturas coloniais e capitalistas. O avanço
estatal foi insensível. Não é uma real comunidade de nações, mas uma
tentativa de hegemonia do Brasil para puxar o capital aos países
vizinhos para esse bloco se instalar melhor no capital global. Perdemos
com isso uma grande oportunidade que a gente ainda poderia ter e parte
disso são as formas de Bom Viver que não passam pelo consumo global.
Levi-Strauss
dizia que a razão pela qual devemos ser pluralistas é que quanto mais
comunidades existirem no planeta é melhor não por uma razão humanitária e
de valores, mas porque se observarmos a história natural vamos saber
que nunca foi possível dizer que espécie ia vingar no planeta. O
darwinismo social não falava da espécie mais apta, mas a espécie mais
adaptada a questões climáticas e ambientais é que iria sobrevir. Não era
a espécie mais capaz. Portanto, sempre foi imprevisível. Então, não
sabemos quais das sociedades humanas serão adaptativas ao futuro
imediato. Pode ser os Yanomami, pode ser um grupo que tenha poucas
pessoas. Desse modo, temos que preservar todas elas porque numa delas
está o futuro da humanidade.
O que se pode
esperar de um sistema onde metade da população mundial é descartada? Na
Índia 25% da população não sabe o que é capitalismo. Só vai sobreviver
quem não centrou sua forma de felicidade e satisfação nesse consumo
globalmente organizado. Existem outras formas.
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No Suma Kawsay, o valor da vida humana está no centro e não nos objetos
Foto: Reprodução |
Analisando
de forma crítica as elaborações indígenas e indigenistas sobre o Bem
Viver, como esse projeto pode se constituir como alternativa ao sistema
de forma prática?
A partir de uma
perspectiva bem política. Com atenção a dois pontos. Primeiro perigo: se
confundir com as promessas desses governos, melhores que os anteriores e
de cunho esquerdista. Podem até ser apoiados, como acontece com o Evo,
mas pressionados sempre. Um dos piores momentos do Brasil, em minha
opinião, é que o PT sempre foi um partido de rua, de mobilização e
ativismo. Percebi que quando Lula assumiu o poder em 2003 a primeira
coisa que fez foi desmobilizar o partido, foi desmontar a estrutura de
ativismo e profissionalizar o partido. Isso ocorreu não só com o PT,
claro. O único que pode fazer a vigilância do caminho do governo é o
povo na rua. Vemos na Bolívia isso com o gasolinazo, a marcha indígena
por Tipnis.
Segundo perigo: o culturalismo.
Política é história, política é defender o movimento da história, a vida
em movimento se defendendo e as pessoas se movimentando para defender a
vida. Não se pode despolitizar os costumes, a cultura. E é partindo de
um conjunto de objetos históricos, que como falei é oposto e
disfuncional com o caminho histórico eurocêntrico e desenvolvimentista
capitalista, temos enquanto países que trabalhar para caminhar em duas
frentes simultaneamente: se instalar globalmente na ideia da
solidariedade e internamente proteger os espaços locais das nossas
nações, preservar as comunidades. Fazer um caminho histórico de mão
dupla: global e local. É preciso também remontar as comunidades que
nesse processo se rasgaram, se desfizeram.
No
Suma Kawsay (tradução do Quechua para o Bem viver) , o conhecimento, a
profundidade, a melhor compreensão das cosmologias, dos pensamentos, o
valor da vida humana, estão no centro e não nos objetos. Ver que toda
essa ‘cultura’ se encontra num projeto macro, que é político, e nunca
pode ser perdido de vista. Do contrário, transformamos essa defesa do
Bom Viver numa questão cultural.
Então você tem
uma sociedade com premissas lindas e discursos belos sobre a vida, mas
na verdade não é nada daquilo. As mulheres sabem bem disso porque
percebem que tem um monte de transformações ainda a serem feitas. Os
poderes são interessados no culturalismo. Quem faz a defesa do
culturalismo diz que sempre foi assim, que a cultura é imutável, que não
teve história e uma vez que se formou sempre foi igual. Então, temos a
defesa de caciques que se alimentam desses privilégios. Isso é um grande
perigo.
O que
são as dobras estruturais do capitalismo em interface com a elaboração
da retórica do Bem Viver, formulação desenvolvida em seus
posicionamentos?
Podemos falar sobre
isso partindo de diversos pontos. Bom, você percebe que a história das
sociedades possui uma vida íntima como coletividade e possui uma fachada
externa, a forma em que ela dialoga com o mundo exterior. Vemos isso
tanto nas tradições preservadas afroamericanas como no mundo indígena. O
Estado oferece medicina, educação, enfim, as ofertas dele, mas nunca
podemos esquecer que o Estado é filho primogênito e dileto do ultramar
colonial porque a gente pensa que o Estado é republicano e que vai
garantir absolutamente tudo para a população.
A
América hispânica tem comemorado o bicentenário de suas repúblicas, mas
pensamos que houve uma grande fratura entre o momento colonial e o
pós-colonial. No entanto, nas aldeias percebemos que esse Estado é
completamente colonial. O Brasil é o país onde menos os povos indígenas
percebem isso, ou seja, ainda que o Estado seja republicano ele se
mantém colonial.
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