Assim
como se nasce arquiteta, jurista ou artesã, também se nasce puta.
Francisca nasceu puta. Mulher. Vadia. Vagabunda. Dada. Puta. Poderia ter
escolhido ser dona-de-casa, confeiteira ou até mesmo artista. Mas
escolheu ser puta. Gostava de ser a outra. De ser a objeto. De ser a
usada. De ser a puta. Gostava de sentir prazer. De falar palavras sujas.
De chupar. De dar. De ser puta. Puta. Puta. Puta.
Francisca
queria saber o porquê das bonecas não brincarem com bonecos. O porquê
de bonecas só poderem brincar de cozinhar e de morar em casinhas. O
porquê de meninas só brincarem com bonecas. O porquê de bonecas serem
iguais. Padronizadas. Corretas. Bonitas. E ela não ser assim.
Francisca
cresceu. E as suas dúvidas, antes infantis, viraram aflições. E as suas
vontades e os seus desejos viraram ações. E as bonecas passaram a
brincar com bonecos. E Francisca saiu de casa. E deixou mãe, pai, irmão e
irmã. E trocou-os pelo outro. Pelo desconhecido. Pelo perigoso. Pelo
efêmero. E pela felicidade. E pela completude. E pela satisfação. E
abandonou a moral. Os costumes. As definições. E ganhou o olhar torto. O
julgamento. O pecado. O fardo. O peso. De estar à margem. De ser o
excluído social. O usável. O objeto. O lixo. A mercadoria. A minoria. A
sujeira. A puta. E, ainda assim, identificar-se como puta. E
reconhecer-se como puta. E declarar-se puta. E chamar-se de puta. Porque
Francisca, ao contrário de suas bonecas, é puta.
Puta.
Porque saiu de casa. Porque deu. Porque deu para qualquer um. E gostou
de dar. Porque seu corpo é um instrumento. Porque seu corpo é uma
ferramenta. Porque seu corpo é o que ela quiser. Porque seu corpo pinta.
Esculpe. Dança. Encena. Porque seu corpo é arte. E arte não precisa ser
bonita. Padronizada. Definida. Precisa ser chocante. Diferente.
Impactante. Precisa romper paradigmas. Definições. Preconceitos.
Conceitos. Porque a cama é o seu palco. Onde se apresenta. Onde se
emociona. Onde se conhece. Onde conhece o outro. Onde goza. Sem nunca
ter gozado.
Puta. Porque engravidou. Porque teve
filhos. Porque não teve filhos. Porque foi para a rua. E se permitiu ser
quem quisesse na rua. Onde viu a catarse. A exaltação. A expressão.
Daquilo que não pode ser exposto em casa. Na igreja. No trabalho. E foi
Brigitte. E foi Tigresa. E foi Geni. E foi Bruna. E foi Marilyn. E foi
Fran. E foi todas elas sem ser ninguém. Porque puta não é gente. Puta
não tem nome. Puta é puta. E só.
Puta? Na rua?
Vergonha. Desonra. Afronta. Tirem-na daqui. Levem-na daqui. E tiraram. E
levaram. E colocaram Francisca, a puta, na masmorra. Porque puta tem
que ser presa. Porque puta tem que sofrer. Porque a cidade não precisa
de puta. Porque ninguém precisa de puta. Porque ninguém precisa ser
puta. Porque ser puta é doença. É loucura. É crime.
Puta.
Puta. Puta. E criminosa. E prisioneira. Tirada da rua. Jogada na
masmorra. Porque na cadeia se conserta gente-com-defeito. Porque animal
vira gente na cadeia. Porque puta aprende a ser gente na cadeia. E, mais
do que gente, aprende a ser mulher. Mulher como deveria ser. Como
deveria ter aprendido com as bonecas. Como deveria ter aprendido com a
mãe. Como deveria ter nascido. Mulher que cozinha. Que varre. Que passa.
Que costura. Que é submissa. Que aceita. Que se cala. Que é mulher.
Puta.
Puta. Puta. Adapte-se. Ajuste-se. Costure. Isso. Costure. Toma,
Francisca. Agulhas. Linha. Pano. Coisa de mulher, Francisca. Vai
aprender a ser mulher, Francisca. Essa cadeia vai te dar jeito,
Francisca. Vai te consertar, Francisca. Borda. Prega. Costura. Isso vai
te ajudar. Vai te transformar. Vai te curar. Vai te fazer normal.
Costure, Francisca. Costure. Costure. E Francisca começou a costurar.
Puta.
Puta. Isso Francisca, continue. Mais agulhas. Mais linhas. Mais panos.
Só lhe resta costurar, Francisca. É o que você pode fazer. É o que você
tem que fazer. É o que você é. E Francisca aceitou. E compactuou. E se
calou. E Francisca aprendeu a costurar. E costurou pedras. Montanhas.
Morcegos. Corujas. Leões. Armas. Bombas. E perdeu parte de si enquanto
costurava.
Puta. Mais agulhas. Mais linhas. Mais
panos. Mais. Mais. Mais. Costurava. Costurava. Costurava. E costurou
flores. Árvores. Frutos. Nuvens. Doces. Borboletas. Pássaros. E uma
tigresa. E perdeu ainda mais de si.
Costurou.
Costurou. E, enquanto costurava outro mundo, perdeu tudo de si.
Francisca perdeu o que a fazia Francisca. O patriarcado e a masmorra a
tornaram invisível. Não era costureira. Não era apenas emoção. Não era
invisível. Era forte. Era corajosa. Era a frente de seu tempo. Era puta.
Mas a padronização reduziu Francisca. Virou um nada. Ficou invisível.
Sumiu. Francisca, quantas somem junto com você? Francisca, aonde vocês
estão indo? Francisca, que mundo é esse que você costurou? Francisca, lá
a Tigresa pode mais do que o Leão? Francisca, lá a Geni ainda é
apedrejada? Francisca, lá a Fran não é uma piada? Francisca, lá as
Franciscas podem ser putas? Porque, Francisca, aqui ainda tem muitas e
muitos ficando invisíveis como você. Porque, Francisca, aqui ainda tem
muitas e muitos que querem ser como você. Vadias. Vadios. Vagabundas.
Vagabundos. Dadas. Dados. Putas. Putos.
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