19 janeiro 2010

Reitor da UnB: "Principal função do PNDH é educadora".

Em entrevista à Agência UnB, o Reitor José Geraldo de Sousa Jr. fala sobre o 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos e a polêmica gerada em torno de alguns de seus pontos.
UnB Agência

Direitos Humanos - 18/01/2010

"Principal função do PNDH é educadora", diz reitor

Em entrevista, José Geraldo de Sousa Junior analisa o Plano Nacional de Direitos Humanos e a polêmica que se criou em torno dele.

Leonardo Echeverria - Da Secretaria de Comunicação da UnB

O Plano Nacional de Direitos Humanos, editado pelo governo federal, foi alvo de intensa polêmica nas últimas semanas. Principalmente no que se refere à apuração dos crimes cometidos durante a ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964. O reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Junior, possui uma extensa militância na área de Direitos Humanos, tanto como advogado quanto como intelectual. Nos anos 1970, no auge dos debates sobre a Lei de Anistia, participou da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF. Também foi vice-presidente da Comissão de Justiça e Paz de Brasília, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na entrevista a seguir, o reitor faz sua avaliação do plano e dos acalorados debates que seguiram à sua publicação, acarretando inclusive mudanças no texto original.

Como o sr. vê essa polêmica em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos?
O Plano Nacional de Direitos Humanos, em suas diferentes versões feitas desde o governo Fernando Henrique, estabeleceu uma rara unanimidade, desde que a Declaração de Viena recomendou que os países adotassem programas de direitos humanos. Formou-se uma espécie de pauta comum nos governos que se sucederam, com ministros de diferentes áreas formando uma defesa comum dos valores consignados nos três programas. O único ponto que me parecia não-resolvido é o que dizia respeito à Comissão de Verdade e Justiça, porque no Brasil, diferente do que aconteceu no Cone Sul, esse assunto permaneceu muito tenso, com resistências claras. Haja vista a dificuldade de abertura dos arquivos do período da ditadura. Eu imaginava que a objeção fosse localizada. No tocante à cultura de direitos humanos inscrita no programa nacional, foi formada uma posição suprapartidária em torno do valores que as várias versões do programa contém. Para minha surpresa, houve uma espécie de encadeamento de objeções, que se aproveitaram do carro-chefe da crítica à apuração dos fatos da repressão e formaram uma ressonância muito grande de objeção aos principais pontos do programa.

Que lições esse embate trouxe?
A primeira lição é que a transição do período de exceção para a democracia foi pactuado por cima e portanto incluiu um compromisso de silêncio. Fica claro que essa estratégia não perdeu a sua força. A anistia tinha sido uma estratégia de pacificação para dar voz aos que tinham sido excluídos da arena política e que foram julgados nesse período, com base na lei de segurança. A resistência conservadora tentou construir uma interpretação da anistia onde ela era extendida, de maneira imprópria, para os que cometeram crimes inadmissíveis de serem praticados por agentes do Estado: tortura, assassinato, sequestros. A responsabilização desses agentes já foi atenuada pelo tempo histórico. Já são admimitidas as responsabilizações civis. Ou seja, o Estado responde, ainda que o agente não responda. Foram produzidas normas de reconhecimento dessa responsabilidade, como as indenizações aos que foram vítimas do processo e às famílias dos desaparecidos. As comissões que trabalham com esses processos precisam das informações. É claro que a lei de 1979 teve essa expectativa de salvaguardar a punibilidade dos agentes, mas não a responsabilidade do Estado.

E como o senhor avalia o Plano em si?
O Plano coloca de novo a política no centro da discussão dos grandes valores nacionais. O seu principal eixo é o educador. Recuperar a História é uma forma de educar para a cidadania. Não se pode aceitar que a História seja contada de maneira parcial. Um dos slogans da campanha de anistia dos anos 1970 era sobre Tiradentes: o governo o condenou, a História o absolveu. Uma versão da História o apresenta como o celerado, o judicializado. A recuperação da História o coloca no livro de aço dos heróis da pátria. Ele não pode deixar de ser lido sem a sua intertextualidade. O Plano foi concebido por mais de 14 mil agentes da sociedade civil, do Parlamento, do governo, que atuaram num mecanismo baseado na Constituição de 1988.

A Lei de Anistia é legítima?
Eu acho que é legítima no que ela representa – e eu participei das lutas e das mobilizações em torno dos comitês de anistia. Mas é evidente que ela foi editada durante a vigência do estado de exceção. Portanto, o resultado final legislado teve uma interferência muito forte do poder autoconstituído. A lei é legítima porque representa um esforço de ultrapassagem de uma conjuntura política, mas também carregou de contrabando, no seu bojo, enunciados que contrariam as normas cogentes de direito internacional – entre elas, a de que não são toleráveis normas de autoanistia. É legítima quando pressupõe a anistia, mas não é quando embute no texto mecanismos de isenção de responsabilização dos agentes que praticaram, em nome do Estado, e contra as suas leis, atos que podem ser incluídos na pauta dos chamados crimes contra a humanidade. Que são não-anistiáveis e imprescritíveis.

Quando o presidente Lula mudou o texto do programa, substituindo a apuração dos crimes cometidos pela repressão política por crimes cometidos na luta política, ele não cedeu aos argumentos de que a lei de anistia vale para todos igualmente?
Eu prefiro carregar a interpretação que não foi isso. Porque ao se institucionalizar um sistema de verdade, abre-se ensejo para que os fatos históricos definam as reponsabilidades. Talvez não as criminais, mas pelo menos as civis e administrativas, que só podem ser estabelecidas por meio de apuração. Em geral, no contexto histórico, houve alguma apuração sobre os protagonistas da resistência contra a usurpação ditatorial do poder constitucional. Esses foram julgados, como foi o próprio presidente Lula.

Vários ministros do governo, como Dilma Rouseff, Franklin Martins e o próprio Paulo Vanucchi, titular da pasta de Direitos Humanos, participaram da luta armada. Pelo texto modificado, eles também podem ser julgados?
Acho difícil que isso possa acontecer. Porque não há bis in idem (expressão jurídica que indica a impossibilidade de se cobrar duas vezes pelo mesmo fato gerador). Não se pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato. E eles foram. Quem não foi, ou estava protegido pelo disfarce de um Estado de fato ou pela extensão excessiva da lei de anistia. Esses nunca foram. Mas todos os que você citou foram objetos de apuração policial-judicial-militar. Outros, nos escavões daquele sistema, perderam a vida.

O sr. acredita que a mudança no texto foi inócua, então?
A não ser no alcance da comissão instituída pelo decreto. Ao se restringir à "verdade", abre a apuração dos fatos, ao excluir a expressão "justiça", subtrai uma instância de responsabilização. Por isso a proposta original era a de uma Comissão de Verdade e Justiça. Na linguagem deste modelo de justiça de transição, que é conceitualmente definida e historicamente produzida, que tem modelos experimentados, esse sistema sempre pressupõe as duas fases. Apuração – a verdade na política –, a forma pedagógica de evitar que, sem apuração, a História seja contada na conveniência de quem dispõe dos meios de narrativa. A Justiça significa responsabilizar. É claro que a discussão no plano não indicava, a priori, como isso se daria. As experiências históricas indicam que a responsabilização pode se dar de muitos modos, não necessariamente com penas de prisão, mas com alguma orientação de conduta.
 
Como o sr. vê a posição do ministro Nelson Jobim, que ameaçou pedir demissão caso o decreto não fosse modificado? E a do ex-presidente Fernando Henrique, que disse temer a "intraquilidade das Forças Armadas"?
Como eu disse, a anistia se deu sob a perspectiva de muitos compromissos. É preciso aferir o alcance do que foi transacionado nesse processo. Claro que pode haver convicção sobre o significado político dos custos de uma transição. Quero crer que, de boa fé, estes a quem você se referiu tenham trabalhado na interpretação de que o custo a se pagar na transição é o de apagar o passado. Não se pode sepultar o passado para a História, mas sim para a sua responsabilidade de agente político. Uma vez eu vi o ex-presidente, numa convenção, distinguir weberianamente a ética do político e a ética do pensador. Sopesadas, uma admite concessões; a outra, não.
 
O sr. acha possível a responsabilização penal dos torturadores? A Lei de Anistia vai ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal?
Não acho impossível. No fundo, a aplicação de uma norma é uma disputa hermenêutica sobre o seu alcance. O Supremo certamente dará uma palavra definitiva sobre a interpretação das normas internas. Mas o Brasil é signatário de convenções e acordos internacionais de direitos humanos em um sistema que a Constituição define que seja aplicado às normas internas do país. Por esses acordos, não prescrevem violações aos direitos fundamentais e não se admite autoanistia. É uma questão em aberto. E ninguém pode impedir que um prejudicado se dirija à Corte no momento em que se esgotem no país as medidas aplicáveis.

Como o sr. avalia a qualidade do debate que envolveu o PNDH?
Estamos ainda num plano bastante restrito. O debate se dá em uma linha de motivação muito interessada. Eu gostaria que essa entrevista contribuísse para chamar ao debate outros atores que se coloquem numa perspectiva não diretamente interessada, mas criticamente sugestiva, como as universidades, a OAB, a Andifes. As universidades têm, em seus estatutos, compromissos com a promoção dos Direitos Humanos. Quando se discute justiça de transição, há etapas: apurar os fatos, responsabilizar, reparar. Uma etapa fundamental é modificar as instituições, é reeducar a sociedade, reorientar as práticas de cidadania.

Disponível em: http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=2850#  

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