05 abril 2010

Chomsky: Europa e América: subscritores da Ordem Internacional

Segue um interessante artigo do filósofo norteamericano Noam Chomsky sobre a ordem internacional contemporânea, em que faz uma crítica à postura das superpotências no caso do Timor Leste.

Europa e América: subscritores da Ordem Internacional

Noam Chomsky

26.Out.06

O caso de Timor-Leste é, provavelmente, aquele que mais próximo do genocídio se encontra, depois da Segunda Guerra Mundial. Estados Unidos e Grã-Bretanha apoiaram fortemente a invasão indonésia de Timor-Leste.

Como temos pouco tempo, não falarei durante o prazo previsto (20 minutos); desta forma, poderemos discutir depois. A ideia de que a Europa e, mais tarde, os Estados Unidos, são a garantia da ordem mundial, é algo que sabemos há muito tempo.

Podemos começar a discutir tal assunto através de um ensaio clássico, baseado na ideia de intervenção humanitária, estudado em qualquer Faculdade de Direito ou outras ; refiro-me ao ensaio de John Stuart Mill sobre a intervenção humanitária (J.S. Mill, « Algumas palavras sobre a Não-Intervenção », Revista « Fraser’s Magazine », Dezembro de 1859). Este ensaio é o primeiro que se dedica, especificamente, a esta questão. Será desnecessário referir que Mill era alguém munido de uma inteligência e de uma integridade moral raras. Tal facto é inquestionável; não é, no entanto, o que está, aqui, em discussão. O seu ensaio questionava se a Inglaterra deveria intervir no mundo feio, na Europa ou fora dela, ou se deveria, simplesmente, olhar para os seus problemas internos e deixar os bárbaros lutar entre eles. A conclusão a que chegou, com algumas nuances e, de certa forma, complexa, é a de que, tendo em conta as várias condições, a Inglaterra deveria intervir. No entanto, continua Mill, uma vez intervindo, a Inglaterra terá de suportar as calúnias e os abusos dos europeus, os quais tentarão encontrar os motivos de base que a animam. A questão é que os europeus, segundo o autor, não conseguem compreender que a Inglaterra é o que Mill apelida de « novidade no mundo », um poder angélico que não busca nada para ela mesma e que actua apenas em benefício dos outros. Se tal obriga a uma intervenção, permite, por outro lado, partilhar os benefícios do seu trabalho, equitativamente, com os outros. Isto é de tal forma incompreensível para os europeus que estes sempre tentarão encontrar motivos que justifiquem a intervenção da Inglaterra, e por aí fora.

A maior preocupação, do autor, era a Índia. Mill apelava à extensão da ocupação, na Índia, a novas províncias. O momento da elaboração do artigo é revelador : 1859. Foi imediatamente a seguir ao que se chamou na história britânica « a revolta da Índia » : a rebelião dos Cipaios (1857), à qual a Grã-Bretanha pôs termo com extrema violência e brutalidade. Tal era bem conhecido na Inglaterra. Houve, então, debates parlamentares – e grande controvérsia. Havia quem se tivesse oposto à actuação inglesa: Richard Cobden, um liberal verdadeiramente convicto, e alguns outros. Mill sabia tudo sobre a questão. Era secretário e correpondente da Companhia da Índia-Este, e acompanhou o assunto de perto. O objectivo da expansão do poder britânico na Índia, tal como ele sabia, era tentar obter o monopólio do ópio para, desta forma, a Inglaterra conseguir, de alguma maneira, entrar no mercado chinês. Os ingleses não conseguiam vender bens à China pois, tal como se queixavam, os bens chineses eram comparáveis aos seus e, desta forma, os chineses não se interessavam por aqueles que viessem da Grã-Bretanha. Assim, a única forma de entrar no mercado chinês, era através dos barcos de guerra e da tentativa de forçar a China a ser uma nação de dependentes do ópio, como o era das armas. Através do monopólio do comércio do ópio –os comerciantes americanos conseguiram uma parte deste mercado, mesmo não o controlando – os britânicos poderiam forçar os chineses a tornarem-se dependentes do ópio e, desta forma, romper o acesso aos mercados do país. Mill tinha razão quando descreveu a situação da expansão britânica, no tempo da Segunda Guerra do Ópio (de 1856 a 1860), a qual permitiu realizar o seu objectivo. A Grã-Bretanha estabeleceu a maior empresa de narcotráfico do mundo ; jamais algo semelhante se conhecera na História. Por um lado, ela conseguira, pela primeira vez, entrar no mercado chinês, e, por outro lado, os lucros do ópio permitiam suportar o Raj o senhorio sobre a India) , os custos da Marinha Britânica e providenciavam, ainda, uma parte significativa do capital que sustinha a Revolução Industrial, em Inglaterra.

Mill sabia tudo isto. Tinha de o saber. No entanto, descreve a Inglaterra como um poder angélico que deveria ajudar os bárbaros que não conseguiam resolver os seus problemas sózinhos. Tal ponto de vista é típico e não citarei outros casos.

Nos Estados Unidos passa-se a mesma coisa. Na Alemanha e no Japão, também assim se passou. As acções japonesea na Manchúria e na China foram tornadas a públicas depois da guerra e traduzidas para inglês pela Corporação RAND. Os japonses diziam, então, querer criar um « paraíso na Terra », e, como tal, gastariam os seus próprios recursos em benefício dos bárbaros ; o Japão suportaria o Governo de Manchuko – que, na época, era controlado por verdadeiros nacionalistas chineses – e protegê-lo-ia dos bandidos que tentassem prevenir os nobres esforços japoneses. Tal era, provavelmente, sincero. Estes são registos internos. O Imperador Hirohito, na sua declaração de capitulação, fez um eloquente relato onde refere as mesmas nobres intenções. Hitler deu os mesmos argumentos quando ocupou a Checoslováquia. O objectivo era o de eliminar conflitos étnicos, e permitir que toda a gente vivesse em paz e harmonia sob a tutela da civilização germânica. O mesmo tipo de discurso continuará a ser utilizado até aos dias de hoje.

Estranhamente, o mundo nunca aceitou esta nobreza [de intenções]. Houve um grande revivalismo deste tipo de discurso, no fim do século XX, período que penso ser um dos piores da história intelectual. Nos últimos anos do fim do milénio houve uma explosão de auto-adulação da parte dos principais intelectuais ocidentais que afirmavam ter a política estrangeira dos Estados Unidos entrado numa chamada « fase nobre », e possuindo um « brilho santo » ; tal política foi descrita pelo « New York Times » e pelo « Washington Post » como « o novo mundo ideal » que conduziria o mundo a uma era de paz. Vaclav Havel fez um discurso onde referiu como um país, pela primeira vez na história, agia por « princípios e valores », sem qualquer interesse para ele próprio. Este tipo de coisas continuavam a ser ditas, aqui e ali. Jornais importantes publicavam artigos sobre os « estados iluminados », o que quer dizer, nós, que tinham, não só o direito, mas a responsabilidade, de levar a cabo uma intervenção em benefício daqueles que sofriam no mundo, e por aí fora.

Dois incidentes justificam esta auto-adulação. Um deles foi o bombardeamento da Sérvia, em 1999. Sabemos, hoje, muitas coisas sobre o assunto. Existem duas grandes colecções de documentos do Departamento de Estado, feitas para justificarem o bombardeamento. O Parlamento britânico levou a cabo um extenso inquérito parlamentar. A OSCE realizou relatórios extensivos e detalhados, quase diariamente, até ao momento dos bombardeamentos. Os monitores KVM realizaram vários outros relatórios. Todos dizem a mesma coisa – quase uniformemente: estávamos perante um local [geográfico] desagradável. Houvera quase 2.000 mortos, no ano anterior ao bombardeamento. O Governo britânico, que era o elemento mais intransigente, esboça uma conclusão completamente espantosa. Quando a li pela primeira vez não quis acreditar ; é algo, no entanto, confirmado pelo inquérito parlamentar. Afirma-se que a maioria das mortes, até Janeiro de 1999 (e, através dos relatórios da OCDE, sabemos que não houve modificações substanciais depois), foram engendradas pelas guerrilhas KLA, que passaram a fronteira para provocar uma cruel resposta sérvia (e que eram suportadas pela CIA, no início de 1999), o que pôde ser usado como um elemento para justificar o bombardeamento. Isto continuou até Março de 1999, momento a partir do qual Blair e Clinton decidiram bombardear, sabendo de antemão (como hoje o sabemos) que tal levaria a grandes atrocidades, como, de facto, aconteceu. Logo que os bombardeamentos se iniciaram, a reacção, já prevista, começou: as limpezas étnicas, as atrocidades, etc. Existiam opções diplomáticas sobre a mesa, sabemo-lo hoje. E este é um facto importante. A solução encontrada pela intelectualidade, para tratar esta questão, foi a de inverter a cronologia e a de suprimir documentação. Vejam e analisem; estamos perante um interessante incidente da história intelectual.

Este é um caso. Um outro é ainda mais grotesco : Timor-Leste. O caso de Timor-Leste é, provavelmente, aquele que mais próximo do genocídio se encontra, depois da Segunda Guerra Mundial. Estados Unidos e Grã-Bretanha apoiaram fortemente a invasão indonésia de Timor-Leste. A Grã-Bretanha era o maior fornecedor de armas, a França veio depois, outros europeus também ; mesmo a Suécia se juntou para obter um pouco do lote. Os assassinios e as mortes continuaram de 1975 a 1999. No início de 1999, as atrocidades cometidas coincidiram com as praticadas no Kosovo. Era algo pior do que qualquer descrição do Kosovo.A Grã-Bretanha e os Estados Unidos continuaram a apoiar a Indonésia. Aquilo só terminou com a realização de um referendo, em Agosto de 1999, no qual, para espanto de todos, os Timorenses votaram pela independência – mesmo aqueles se encontravam sob terríveis ameaças. O Exército Indonésio continuou, no entanto, a actuar de uma forma selvagem e quase destruiu por completo Timor-Leste. Blair e Clinton continuaram a apoiar a Indonésia. Oito dias depois do Exército indonésio ter destruído Dili e expulsado a sua população, Clinton diz que tal é da responsabilidade dos indonésios, logo nada podemos fazer. E mesmo depois de os Estados Unidos terem declarado um boicote (decidido após a entrada das forças de paz australianas), o Governo Britânico continuou, literalmente, a fornecer armas à Indonésia; nada os fazia parar o fornecimento de armas. Nunca houve nenhuma intervenção. O que aconteceu foi que, a 11 de Setembro de 1999, numa conferência internacional na Nova Zelândia, Clinton foi submetido a uma terrível pressão internacional e, depois desta, a uma pressão doméstica (que teve a sua origem em fontes poderosas da esquerda e num movimento popular). Clinton estava sob uma enorme pressão diplomática internacional. O que então fez foi informar os generais indonésios de que tudo tinha terminado. Assim que obtiveram a ordem do seu Senhor os indonésios retiraram-se de Timor. Isto demonstra como tudo poderia ter sido evitado durante 25 anos: os Estados Unidos não participariam mais e tudo terminaria. Os indonésios abandonaram Timor apesar de terem jurado que nunca o fariam. Depois da retirada indonésia, as forças da missão de paz da ONU entraram no território, encabeçadas pela Austrália, o que foi algo de positivo, e acabaram com o que restava do conflito com as milícias . Esta é a segunda prova de intervenção humanitária.

A solução tem vindo, constantemente, internacionalmente. Há mais ou menos um ano, em Dezembro de 2004, as Nações Unidas organizaram um grande painel para reconsiderar a Carta ; perguntava-se se a Carta da ONU precisaria de alguma revisão particular, no que respeita àquilo que se considera como « responsabilidade de protecção » - intervenção humanitária. O painel incluia pessoas como Brent Scowcroft, Conselheiro de Segurança Nacional de Bush, com larga experiência no sistema de segurança, Gareth Evans, da Austrália, e outras destacadas personalidades. A conclusao a que chegaram foi a de que a solução se encontra no Artigo 51. Todos concordaram que as intervenções do Capítulo 7 eram legítima : o Conselho de Segurança pode apelar à intervenção. Tal é para eles inquestionável. A solução encontra-se no Artigo 51, que afirma que a única excepção para o uso da força é quando um estado se encontra sob ataque directo (podendo este, portanto, utilizar a força), o que é normalmente interpretado como estando sob ameaça de um iminente ataque directo, tal como na famosa formulação de Daniel Webster, no caso da Carolina. A conclusão foi a de que o Artigo 51 não necessita de nenhuma revisão ou emenda. A restricção do uso da força deve permanecer tal como está formulada na Carta Original (sem nenhuma revisão). Em Setembro último, houve uma Cimeira que analisou, de novo, esta questão, e que chegou exactamente à mesma conclusão. Os então países não-alinhados, que representam aproximadamente 80% da população mundial, tomaram uma importante posição sobre o assunto. Imediatamente após o bombardeamento da Sérvia – o qual foi extremamente impopular em todo o mundo, tendo sido condenado por países como Israel, Índia, e outros, contrários à percepção europeia – realizaram o maior encontro de sempre, a Cimeira do Sul, o primeiro ao nível dos chefes de Estado. Aprovaram uma longa e interessante declaração, uma extensa crítica da globalização neo-liberal, que, segundo a declaração, se encontra ridicularizada e destroçada no Ocidente.

Não há comentários a fazer. Condenaram a tão aclamada « correcta » intervenção humanitária, que nada mais é do que uma expressão do imperialismo tradicional. O Tribunal Internacional foi considerado da mesma forma, pelo que se remontou ao caso de Corfu em 1949, ao caso da Nicarágua e de outros mais. Há, de facto, uma unanimidade essencial, no que toca aos poderes que preferem intervir unilateralmente : em primeiro lugar, actualmente, os Estados Unidos, e, em segundo, o que o jornal do instituto real da Grã-Bretanha designa de « spear-carrier of pax Americana » (Michael MccGwire, « International Affairs », jornal do « Royal Institute os International Affairs », 1 de Janeiro de 2005), referindo-se à Inglaterra de Tony Blair. Exceptuando estes dois, não existem apelos ao direito de uma intervenção humanitária. E esta é a solução encontrada. Houve algum milagre que modificasse as coisas, nos últimos 5 minutos ? Se o houve, então é algo de desconhecido no Terceiro Mundo, as vítimas de sempre. Tanto quanto sei, voltamos ao tempo de John Stuart Mill na solução : nada mudou.

*Intervenção no Instituto de Negócios Europeus em 19 de Janeiro de 2006
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Versão em português extraída do site http://odiario.info/?p=55

Versão original em inglês disponível no site do autor: http://www.chomsky.info/talks/20060119.htm

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