10 dezembro 2010

Pietro Costa: "A democracia está em crise desde o momento em que nasceu"

“A democracia está em crise desde o momento em que nasceu”

Pietro Costa, professor de História do Direito da Universidade dos Estudos de Florença (Itália)

Publicado em 22/11/2010
VINÍCIUS ANDRÉ DIAS

Prof. Pietro Costa. Foto: Marcelo Elias
Gazeta do Povo
Considerado um dos principais historiadores jurídicos do mundo, o italiano Pietro Costa, professor de História do Direito da Universidade dos Estudos de Florença, acompanhou de perto o resultado do segundo turno das eleições no Brasil e viu a primeira mulher ser eleita presidente. Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo, o estudioso dos sistemas democráticos considerou o fato um sinal de saúde democrática do país e fez considerações sobre o presente e o futuro das democracias. Costa passou uma temporada de cerca de um mês em Curitiba, na qual ministrou o curso “Poucos, muitos, todos: lições sobre história da democracia”, na pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e lançou a obra Soberania, Representação, Democracia: ensaios de História do pensamento jurídico (Juruá Editora).
O Brasil acaba de eleger sua primeira presidente. Em que medida esse fato é importante para a democracia?

Parece-me um fato bastante importante. Recordemos que a questão de gênero foi um critério de exclusão política por muito tempo. Esse problema já foi resolvido em todas as democracias, porém, são ainda poucos os casos em que uma mulher ocupa o cargo mais alto. O fato de o Brasil ter eleito uma mulher é um sinal de saúde democrática do país.

A presidente eleita Dilma Rousseff era desconhecida da grande maioria da população até pouco antes das eleições e se atribui sua vitória à enorme popularidade do presidente Lula. Como o senhor analisa, em uma democracia, a existência de um líder com tamanha aprovação popular?

Esse tipo de líder é um elemento interessante. É verdade que o excesso de popularidade poderia ser perigoso. Seria, seguramente, se não houvesse mecanismos constitucionais que garantissem a alternância de poder. Felizmente, esse não é o caso do Brasil. Existe um limite para a renovação de mandato. Aliás, parece-me um sinal de maturidade democrática brasileira o fato de que um líder tão popular tenha seguido os ditames da Constituição.

Tamanhos índices de aprovação, no entanto, abrem caminho a medidas autoritárias, sobretudo em outros países da América Latina. Em geral, esse tipo de ataque à democracia começa com atentados à liberdade de imprensa e tentativas de controle da mídia. O quão importante é a liberdade de expressão para a democracia?

A liberdade de expressão é um dos direitos mais importantes para a saúde da democracia. Ela não pode existir sem liberdade de confronto de opiniões. É preciso também dizer que, não só no Brasil, mas em todas as democracias atuais, o problema da liberdade de expressão pode ser considerado um perigo, tendo em vista a influência que grandes concentrações econômicas têm sobre o sistema de mídia de massa.

O deputado federal mais votado nessas últimas eleições brasileiras foi um palhaço, o Tiririca, que afirmava não saber o que um deputado faz. Esses votos foram considerados por muitos analistas como “votos de protesto”. O que o senhor pensa desse fenômeno?

Esse tipo de protesto é recorrente nas democracias. Se permanece um fenômeno marginal, podemos considerar o caso como um episódio folclórico, que não incide diretamente no estado de saúde da democracia. Pelo que sei, esse parece ser o caso do episódio do Tiririca.

A redemocratização do Brasil ocorreu há menos de três décadas. Como o senhor avalia a nova democracia brasileira?

A democracia brasileira é muito recente se compararmos com a Grã-Bretanha e não tão recente assim se compararmos com a Itália. Na Itália, temos um sistema democrático a partir do pós-Segunda-Guerra, de 1945. Encontro analogias superficiais entre Brasil e Itália de 1950 a 1970, sobretudo no aspecto do esforço que a Itália teve nos anos 1950 e que o Brasil está tendo agora para diminuir um excesso de desigualdade no corpo social.

O jornalista britânico Gerald Barry dizia que “democracia é o regime em que você diz o que quer e faz o que mandam”. De fato, parece haver um descompasso entre o que o povo quer e o que os representantes eleitos fazem. Há uma crise no sistema democrático?

Poderia responder com uma provocação: a democracia está em crise desde o momento em que nasceu. A verdade é que ela sempre criou muitas e altas expectativas e, consequentemente, muitas ilusões. É verdade, porém, que no presente, ao menos na Europa ocidental, há elementos de crise na democracia. Por exemplo, a escassa representação dos partidos políticos em relação à sociedade, a concentração do sistema de mídia de massa, que torna difícil a expressão da opinião dos cidadãos, e, como pano de fundo, a crise do estado de bem-estar social (Welfare State) na Europa ocidental. São três elementos que permitem falarmos de crise da democracia na Europa ocidental.

Mas há alguma boa alternativa à democracia?

O elemento de força da democracia é exatamente este: não parece existir hoje uma proposta de regime político que seja mais recomendável que a proposta democrática.

A Constituição de 1988 lançou as bases da democracia brasileira, mas é muito criticada por ser detalhista em demasia e utópica, ao prometer o que o Estado não consegue cumprir. Como o senhor analisa a questão?

Torno a fazer uma analogia entre Brasil e Itália, pois essas características encontramos em muitas democracias constitucionais da segunda parte do século 20. Sem dúvida, essas constituições fazem promessas ambiciosas. De outro lado, são constituições-projeto. E a realização do projeto não é automática, pois depende do legislador, das forças políticas e dos recursos disponíveis no país.

Analistas políticos dizem que falta ao jogo democrático brasileiro uma direita forte e organizada. Na Europa e nos Estados Unidos, é comum se observar movimentos mais consistentes da direita – ainda que muitas vezes radicais e até folclóricos. O senhor concorda que faz falta uma direita mais atuante?

A característica principal da democracia é o confronto e a contraposição de posições políticas diversas. Portanto, falando abstratamente, quanto mais forem representadas todas as posições e interesses sociais, tanto mais a democracia será saudável e vital. Mas é difícil estabelecer uma terapia a partir de cima. A sociedade se transforma, é fluida, em todos os países, inclusive na Europa ocidental. Há tempos em que a esquerda é forte e a direita é fraca e há tempos em que a situação se inverte, novas forças políticas emergem, como até extremas direitas racistas que vêm ocorrendo em diversos países europeus. De todo modo, a democracia deveria estar apta a funcionar de qualquer modo, aderindo às diversas situações concretas que uma sociedade encontra.

E posições tão radicais como as racistas e xenofóbicas, que atacam pilares do próprio sistema, são aceitáveis em uma democracia?

Há duas imagens da democracia, que se realizaram historicamente ao longo do século 20: uma que quer proteger a si mesma e outra mais disposta a enfrentar riscos maiores. Por uma democracia que protege a si mesma, quero dizer uma democracia que coloca fora da lei, fora do Direito, movimentos extremistas que atacam a própria democracia. Por exemplo, a justificação do macarthismo nos Estados Unidos, não obstante o extremismo que essa posição acabou adotando, era justamente a justificativa de defender a democracia dos perigos, nesse caso do comunismo. Uma outra ideia de democracia é aquela que tem obediência aos critérios de liberdade de opinião, considerando legítimas inclusive expressões antidemocráticas. Saber qual das duas é mais recomendável depende das posições individuais. Dou muita importância ao princípio da liberdade de expressão e sou favorável ao mais amplo confronto de opiniões, desde que se sejam opiniões e não ações que ofendam os princípios fundamentais do ordenamento.

Qual é o futuro da democracia?

Naturalmente, não é possível fazer previsões. Mas podemos fazer constatações. Ela tem não só o presente, mas o futuro diante de si. Não podemos esquecer as dificuldades, os elementos de crise dos quais já falamos, que naturalmente moderam o otimismo. Uma coisa certa se pode afirmar: não se pode exportar a democracia, como se exporta uma mercadoria. É um processo de cada povo, que se empenha e organiza seu próprio sistema. Uma democracia importada é uma contradição em termos.

Entrevista originalmente publicada em

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