17 julho 2012

Um Cardeal sem passado

Por José Ribamar de Bessa Freire

Nós e Deus que tudo vê sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura.

O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão ‘Uma cidade sem passado’. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.

O filme

Comecemos pelo filme, baseado em fatos reais. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é ‘minha cidade natal na época do III Reich’. Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade natal, considerada baluarte da resistência antinazista.

Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal fecham-lhe suas portas. Ninguém quer futucar o passado. Sônia, porém, não desiste. Entrevista pessoas próximas que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, não passam de fiapos sem sentido.

Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões do silêncio: a cidade havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória.

No entanto, o mais doloroso era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, posavam, hoje, como heróis. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.

Deus tá vendo

E é aqui que entra a morte do cardeal, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? Até hoje, não temos acesso aos documentos.

Se pudéssemos criar, no campo da memória, algo similar à operação Deus tá vendo, organizada pela Polícia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal, na qualidade de repórter da Asapress, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Deus é testemunha de que quem lutava contra as arbitrariedades eram dom Helder Câmara, dom Paulo Arns e alguns outros mais que foram perseguidos. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de dom Eugênio.

Nós e Deus que tudo vê sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia, posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário tinha orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares. “Quem tem dúvidas… basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a jornalista Hildegard Angel.

Por isso, a jornalista estranhou a forma como o cardeal Sales foi retratado no velório pelas autoridades. O prefeito Eduardo Paes declarou que o cardeal “defendeu a liberdade e os direitos individuais”. O governador Sérgio Cabral e até José Sarney insistiram no mesmo tema.

Mas não foram só os políticos. O jornalista Luiz Horta escreveu que dom Eugênio abrigou no Rio “uma quantidade enorme de asilados políticos”, calculada em “mais de 4 mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul”. É. Pode ser. Um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, ajudava quem lutava contra.

No entanto, ajudaria muito se o jornal entrevistasse um por cento das vítimas, se 40 perseguidos nos contassem como foram ajudados pelo cardeal. O jornal, porém, não dá o nome de uma só dessas mais de 4 mil pessoas.

Enquanto isto não acontecer, ficamos com o depoimento de Hidelgard Angel, cujo irmão Stuart foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal.

Segundo Hilde, dom Eugênio “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos ‘subversivos’ que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)”. Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar “que ocorreu justo o contrário!”…

Os jornais elogiaram até o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo 2º, com o mesmo zelo com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino. São os rituais do poder.

Um corretor de imóveis, Gilberto de Almeida, 59 anos, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25, soltando-a dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória.

A mídia nos forçou a fazer esses comentários, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte e de perda. Mas se a gente não falar agora, quando então?

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