06 março 2010

Justiça de Transição

Por José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da Universidade de Brasília, professor da Faculdade de Direito e coordenador do projeto “O Direito Achado na Rua”

Em seguida às comemorações do Dia Internacional dos Direitos Humanos, em dezembro, o presidente da República, em cerimônia no Itamaraty para entrega do Prêmio Direitos Humanos 2009, editou o decreto de aprovação do novo Programa Nacional de Direitos Humanos. Ao adotar, em 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a seguir a recomendação da Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993): atribuir aos direitos humanos a condição de política pública governamental. Desde então, importantes revisões têm sido objeto de atenção dos protagonistas desse campo, no caso brasileiro por meio de uma interlocução construtiva entre governo, parlamento e sociedade civil, cujo instrumento eficiente é a série de Conferências Nacionais de Direitos Humanos.

Uma das mais significativas atualizações, levada ao PNDH 2 a partir de 2002, foi a inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma coerente com o princípio de indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos, expresso na Declaração de Viena. O PNDH 2, orientado também pelos parâmetros estabelecidos na Constituição de 1988, incorporou ações no campo da garantia do direito à educação, saúde, previdência e assistência social, trabalho, moradia, meio ambiente, alimentação, cultura e lazer, de forma conjugada com estratégias de elaboração orçamentária e metas gerenciais de execução.
Ao lado de mobilizações para desenvolver uma cultura de respeito aos direitos humanos, a previsão de recursos orçamentários para assegurar a sustentabilidade de programas e dos órgãos responsáveis.
A nova atualização (PNDH 3) chamou a atenção pela imediata e concertada objeção a algumas de suas diretrizes, mobilizando segmentos conhecidamente refratários ao aprofundamento democrático proveniente dos avanços da Constituição de 1988. Tive ensejo de fazer crítica a essas reações em artigo no Correio Braziliense (Desafio à Educação, p. 15, 20/01/2010).
Aqui, quero por em relevo a nova proposta para a questão, que cuida da instalação de uma comissão nacional com amplos poderes para apurar crimes da ditadura militar e responsabilizar os agentes culpados.
Trata-se da originalmente chamada Comissão de Verdade e Justiça, que, seguindo modelo adotado em países com necessidade de apurar violações de direitos durante regimes de exceção, acabou, por conta de tensões vivenciadas no seio do governo, redefinida como Comissão Nacional de Verdade.
Resolução da OEA (2006) reconhece a importância do direito à verdade para o fim da impunidade e a proteção aos direitos humanos. As divergências que precederam a aprovação do Programa opuseram, de um lado, o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, com a idéia de constituir a comissão não só como resposta às expectativas de familiares de pessoas torturadas e mortas nos anos da ditadura (sem que, em muitos casos, sequer os corpos tenham sido localizados),mas também com poderes
para recuperar arquivos ainda em mãos de órgãos militares e de segurança, que permitam elucidar casos de desaparecimentos e responsabilizar agentes, em face da natureza imprescritível das violações cometidas.
De outro lado, o ministro da Defesa Nelson Jobim, apoiado em premissa, a meu ver errada, de que a Lei de Anistia e a interpretação de seu alcance duplo (aos militantes políticos e aos agentes de repressão) seria fruto do acordo político de 1979, com o objetivo uma reconciliação nacional. Ele advogaria, portanto, uma comissão de reconciliação, mas não de justiça.
A reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorre da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicam ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência.
Essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.
Esse conceito é proposto por Paul Van Zyl, vice-presidente do International Center for Transitional Justice.
Examinando os elementos-chave da justiça transicional, o que não se pode perder de vista, à luz de seus enunciados, é que a justiça transicional admite sim reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre crimes, conceder reparações às vítimas e reformar as instituições responsáveis pelos abusos.

Publicado na Revista do Sindjus
Edição Fevereiro-Março de 2010
http://www.sindjusdf.org.br/pdf/Revista/revista64.pdf  

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