08 novembro 2010

Um Domingo Espetaculoso - ou, Cenas de um novo Bestiário.

Um Domingo Espetaculoso  - ou, Cenas de um novo Bestiário.

Na noite de ontem, muitos de vocês devem ter assistido ao programa Domingo Espetacular, da Rede Record, emissora da Igreja Universal do Reino de Deus - IURD, do Edir Macedo. A emissora da IURD abordou com destaque, nesta noite, a questão do “infanticídio” entre os povos indígenas no Brasil.

Imaginando que receberei em sala de aula muitas indagações sobre o meu posicionamento em torno do que foi mostrado na matéria, antecipo-me fazendo aqui alguns breves comentários.

Aqueles que assistiram à matéria, com toda a razão, devem ter ficado horrorizados. Lógico. Não seria de se esperar outra coisa.

Também fiquei horrorizada. Em primeiro lugar pela utilização, totalmente irresponsável, das imagens de supostas reconstituições de supostos homicídios de crianças em comunidades indígenas (sim, o tipo penal é homicídio, e não infanticídio, pois conforme a lei penal brasileira este segundo tipo só ocorre durante a fase puerperal, o que revela o equívoco de se falar em “infanticídio” nos casos mencionados pela reportagem).

O imaginário da nossa sociedade, desde o início das conquistas e colonização do continente, cristalizou a visão dos índios como demônios, como feras selvagens, sem alma, sem coração, totalmente desapiedados e entregues a orgias ritualísticas de canibalismo e sacrifícios humanos. Não tenho dúvidas de que as imagens veiculadas ontem pela Record, e que certamente serão reproduzidas diversas vezes mais pela emissora, serão vistas por milhões de brasileiros, desavisados e cheios de preconceito, como pura “comprovação” desta visão demonizante dos indígenas.

A total irresponsabilidade da emissora ao veicular tais imagens está em não levar em consideração, em primeiro lugar, a situação de extrema vulnerabilidade em que se encontram ainda hoje os povos indígenas no país. São povos extremamente fragilizados que convivem, no dia-a-dia, com enormes perdas de vidas decorrentes de falta de assistência médica, de contágio por doenças antes desconhecidas, de assassinatos em perseguições por conflitos fundiários com invasores de suas terras, de falta de condições básicas de vida em razão da invasão total de suas terras pelo latifúndio, de suicídios em razão da falta de perspectiva de vida, de atropelamentos em estradas que cortam suas terras em benefício de terceiros, etc., etc. A cada ano, centenas de indígenas, cujos povos conseguiram sobreviver a cinco séculos de genocídio em mãos colonizadoras, morrem de fome, de doenças, à bala, por facadas, por espancamento, por atropelamento, por suicídio. Males estes, diga-se de passagem, todos gerados e trazidos pela nossa sociedade, e que, antes do contato, estes povos desconheciam. Acrescente-se a toda esta situação, as perseguições policiais, o preconceito, as humilhações e discriminações.

Não tenho dúvidas de que a matéria do consórcio IURD/JOCUM/ATINI, veiculada ontem pela Record, potencializará mais ainda esta situação de vulnerabilidade dos grupos indígenas, sobretudo aqueles com pouco contato ou que vivem em situação extrema de marginalização, com os Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, deturpadamente mostrados na matéria.

Segundo, fiquei horrorizada em ver como informações importantes foram deliberadamente ocultadas do público. A reportagem não informou que a ONG Atini, que mantém a chácara mostrada na matéria, é ligada à agremiação religiosa evangélica neopentecostal “Jovens Com Uma Missão” (JOCUM). A reportagem também ocultou que a Sra. Márcia Suzuki, apresentada como pessoa que teve contato com os indígenas em razão de suas atividades como “pesquisadora”, na verdade é missionária evangélica, e é na qualidade de evangelizadora dos índios, e não como pesquisadora, que a mesma desenvolve as suas atividades junto àqueles. A reportagem também não informou que o Projeto de Lei ao qual se referiu no final da matéria, é de iniciativa da bancada evangélica na Câmara Federal, sob o patrocínio do Deputado acreano Henrique Afonso, cujas bandeiras são das mais conservadoras, reacionárias e falso-moralistas - tudo em nome do cego fundamentalismo religioso.

Aqui, uma observação. Nada tenho contra os evangélicos. A diversidade religiosa é algo que aprendi a prezar desde cedo. Ainda nas décadas de 60 e 70, quando criança numa família católica, aprendi do meu pai a convivência com a diversidade. Minha casa era uma das raras que se abria para o convívio com evangélicos, mórmons, espíritas e esotéricos iniciados. Cresci presenciando debates enriquecedores a respeito de diferentes pontos de vista em matéria de temas religiosos, e aprendendo, com o meu pai, que as divergências religiosas podem e devem ser permeadas pelo respeito à escolha de cada um, porque fé é coisa particular, não se impõe a ninguém, e nem é motivo para se desrespeitar a quem quer que seja. O que não posso admitir, de modo algum, é a instrumentalização que se faz de determinados temas com o propósito, oculto, de se conquistar espaço para esta ou aquela confissão religiosa. Muito menos que isso se faça, como é o caso aqui comentado, através da demonização dos povos indígenas, prática tão desprezível quanto antiga na História desse país e desse continente.

Em terceiro lugar, fiquei horrorizada com o modo como alguns dados – sobretudo a fala dos índios – foram objeto de distorção e manipulação. A matéria fala que não há dados estatísticos sobre os casos de infanticídio, mas ao mesmo tempo afirma que a quantidade de casos é muito grande e que se trata de uma prática disseminada. Ora, como se pode fazer tal afirmação se não se dispõe de dados? Depois, mostra imagens de uma indígena Kaiowá segurando o seu bebê ao colo e levanta sobre ela a suspeita, quase que em tom de acusação, de pretender matá-lo por inanição. Em nenhum momento a reportagem se refere à tragédia vivida pelos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul que, espoliados e confinados em diminutas reservas, verdadeiros depósitos de índios, sem perspectivas e acossados por seitas fundamentalistas que trabalham para introjetar a demonização de suas culturas, morrem de fome ou têm o suicídio como saída para os seus males. E no frigir dos ovos "a tribo", embora que não tenha dado "a ordem", poderá levar a mulher a matar a criança por inanição. Para mim isto não é jornalismo, é pura obscenidade.

Além disso, utiliza fala de alguns indígenas que referem-se a práticas de infanticídio no passado, como se se tratasse de algo recente em suas vidas. Aqueles que trabalham com estes povos de forma séria e respeitosa sabem que a sua noção de tempo é muito diferente da nossa e que fatos ocorridos décadas atrás são considerados como tempo presente. Várias lideranças indígenas já esclareceram que as práticas de infanticídio  antes existentes deixaram de ocorrer nos respectivos povos após o estabelecimento do contato, em decorrência do acesso à assistência médica e até mesmo à demarcação de suas terras. Ou seja, mudaram os costumes quando as condições de vida também mudaram e não por força de alguma norma criminalizadora.

Em quarto lugar, fiquei horrorizada por ver como o senso comum ainda está presente no Judiciário em matéria de status jurídico dos indígenas. Os especialistas em direitos indígenas no país não são muitos. Mas, se procurados pela reportagem, certamente não perderiam a oportunidade de irem a público para esclarecer que os indígenas no Brasil, ao contrário do que diz o senso comum, não são nem nunca foram inimputáveis. Ao invés de um especialista em direitos e em legislação indigenista, a matéria dá preferência à fala de um Desembargador que, com todo o respeito que lhe é devido, não fez mais do que repetir o discurso raso e apressado dos que não conhecem da legislação especial relativa ao tema.

E aqui, neste ponto, algo intrigante surge da matéria. O que se pretende, afinal, ao se tratar do tema da imputabilidade penal indígena? Adivinhou quem respondeu: a criminalização dos indígenas em face do “infanticídio”. Dos séculos XVI a XIX as práticas de canibalismo e de sacrifícios humanos condenavam povos indígenas inteiros a serem combatidos em guerras e a terem escravizados os seus sobreviventes. A proposta, “moderna”, do Deputado Henrique Afonso e do consórcio IURD / JOCUM / ATINI, pretende ser mais humana e eficaz: fazer com que os índios respondam a um inquérito policial, que sejam processados, e, se condenados, que sejam encarcerados em presídios. E nada mais humano e eficaz do que os nossos presídios, não é mesmo?. Agora imaginem, indígenas de pouco ou recente contato com o mundo exterior, tendo que responder processos e serem encarcerados por algo que lhes parece perfeitamente normal. Para ilustrar um pouco o que quero dizer, segue um pequeno trecho do filme “Os Deuses devem Estar Loucos”:


Em quinto lugar, causou-me estranheza a esquiva do representante do órgão que desde 1973 é o encarregado oficial dos assuntos indígenas no país – a Funai. Não vejo nenhuma razão para que a FUNAI se esquive de pronunciar-se, de emitir opinião sobre o assunto. O órgão possui excelentes antropólogos e uma longa trajetória de conhecimento da realidade indígena. Conhece da complexidade da questão, de todas as suas nuances, e dos problemas de desagregação sócio-cultural causados em diversas comunidades indígenas por grupos fundamentalistas religiosos.

Em sexto, por ver como uma concessão de serviço público pode ser posta, usando de artifícios ardilosos, a serviço dos propósitos de determinado grupo religioso, como meio de facilitar a consecução de seus objetivos publicamente inconfessos.

E em sétimo lugar, mas não menos importante, por ver como o século XVI está ainda dentro de nós: como os veículos de mídia televisiva, com toda a parafernália tecnológica do século XXI, pode retroceder ao nível do método e dos propósitos dos viajantes dos tempos da descoberta do Novo Mundo. As imagens veiculadas pela Record compõem, no final das contas, cenas de um novo Bestiário. Plínio, o Velho, ficaria com inveja.

2 comentários:

  1. Cara colega Rosane, concordo com todas as suas colocações.
    E me causa estranhamento também como a FUNAI, em diversas oportunidades, se esquiva de enfrentar diretamente o tema.
    Mas não seria exatamente agora a oportunidade de se promover uma política pública, laica e estatal, para enfrentar um problema que, seja qual for o grau, se coloca? Não é o vácuo de políticas públicas que dá espaço para organizações potencialmente proselitistas?
    Claro que não me refiro à proposta criminalizadora equivocada do Dep. H. Afonso. Mas acho que uma estratégia puramente diversionista sobre a questão tende a potencializar os problemas.
    Abs
    Guilherme

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  2. Caro Guilherme.

    Concordo com você. Vejo a importância, tanto neste tema quanto em outros, da adoção de políticas públicas que sejam expressão dos valores republicanos e da laicidade do Estado. Me assusta como perspectivas religiosas, notadamente de cunho fundamentalista, alinhadas ao furor criminalizante tão a gosto da mídia, tentam impor a sua agenda ao próprio Estado.
    O próprio movimento indígena tem reivindicado a formulação de uma política indigenista que seja resultante de um diálogo profundo com as visões de mundo e projetos de vida dos povos. Muitos alegam que o respeito a estas visões e projetos de vida significam uma postura preservacionista, de congelamento cultural, o que não é verdade.
    Na realidade dos povos contactados o infanticídio foi abandonado e hoje é uma prática tão costumeira quanto o é na nossa própria sociedade. Por outro lado, surgiram problemas novos como morrer de fome, catar lixo para sobreviver, viver escorraçado devido às perdas territoriais, etc.
    Por este motivo é que existem ainda cerca de 60 grupos indígenas em situação de isolamento voluntário, nos recônditos da floresta. É possível, sim, que pratiquem o infanticídio em determinadas circunstâncias (infanticídio, e não assassinato de crianças, como tenta fazer crer a reportagem). Nestes casos, o próprio contato em si já tem sido, historicamente, uma grande violência, dado que a regra é a destruição destas comunidades em razão de doenças que levamos, da eliminação de sua autonomia, e da destruição de seu meio-ambiente e referenciais histórico-culturais. Além disso tudo, terão ainda que suportar uma política de criminalização e encarceramento? Eepero que não.
    Também concordo com você no sentido de que esquivar-se do problema (não o falso problema colocado pela Record, mas o problema mais complexo, do choque cultural) não é solução, tanto que a Comissão Nacional de Política Indigenista - CNPI, colegiado no qual têm acento lideranças indígenas e indigenistas sérios, não proselitistas, já formularam propostas em torno do tema da proteção das crianças indígenas para a revisão da lei indigenista, que data ainda de 1973.
    Abraço,
    Rosane

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