04 abril 2011

Cobaias sem história

Cobaias sem história


Cláudio Lembo

Alguns historiadores e alguns antropólogos passaram a se dedicar a uma ingrata tarefa. A de buscar elementos para recolher os episódios das vidas das gentes sem registros da História.

Recolhem, no passado, culturas e maneiras de viver daqueles que, em razão do egoísmo de outros povos, mereceram tratamento discriminatório dos historiadores de outros tempos.

Já se disse que a História só retrata os vencedores. É pouco. Ela omite os utilizados como objeto em muitos momentos do percurso da humanidade. Alguns distantes, outros bem próximos do instante em que se vive.

Esqueceram os homens do período colonial, por exemplo. As agruras vividas pelos navegadores dos anos quatrocentos e quinhentos. Apenas retrataram as conquistas e glórias dos que chegaram a mares nunca dantes navegados.

As milhares de pessoas lançadas ao mar, mortas pelo escorbuto e muitas outras doenças, jamais são lembradas. Ainda porque a morte nunca mereceu relevância entre os vivos. É motivo de temor expresso ou envergonhado.

Mais tarde, também em consequência das aventuras marítimas dos descobridores, inicia-se o infame comércio de africanos para as Américas. Este propiciou episódios repletos de selvageria e desamor ao ser humano.

Em tempo posterior, ainda por ação dos colonizadores, deu-se o êxodo de milhões de miseráveis da Europa e Ásia para muitos espaços americanos, sem qualquer previa preparação física ou psicológica dos deslocados.

Chegavam como gado, nas fazendas da América portuguesa ou nas estâncias do espaço espanhol. Eram tangidos, na exploração da força de trabalho, de maneira impiedosa, sem qualquer preocupação com a situação física ou psicológica de cada um ou dos seus segmentos.

Ainda hoje migrantes de várias regiões do País são conduzidos para canteiros das grandes obras e, sem qualquer sensibilidade, são tratados como meros números a serviço de empresas inescrupulosas.

Poucos buscam conhecer a realidade destes trabalhadores, tal como no passado, quando os miseráveis não constituíram objeto da História. Esta premia os senhores e aqueles que podem remunerar biógrafos.

O homem e a mulher comuns não merecem registro. Morrem e seus nomes e corpos somem na voragem dos acontecimentos. Raramente surge livro contendo registro da vida nas periferias. Ou nos hospitais e clínicas instaladas em áreas onde a pobreza reina absoluta.

A morte - o único acontecimento igualitário presente na humanidade -, quando abate miseráveis, não merece nenhuma análise ou reflexão. Muito menos consideração. São números. Suas vidas e obituários devem ser desconsiderados.

No decorrer da Revolução Industrial - aqui e nos países centrais - as máquinas procederam à violenta colheita de vidas e destruíram a saúde de milhares e milhares de pessoas.

Só com o surgimento das idéias socialistas afloraram as vicissitudes do proletariado na Europa e nos Estados Unidos. Aqui, no Brasil, no final do último Século, poucos passaram a estudar movimentos sociais e revoluções populares.

No interior desta saga - da gente sem história - explode, agora, na Guatemala, um episódio doloroso e jamais comentado pelos meios de comunicação. Quando da descoberta da penicilina criminosos testes se desenvolveram.

Os cientistas norte-americanos desejavam conhecer os efeitos do novo medicamento. Corria 1945. Não tiveram dúvidas. Foram à Guatemala e inocularam, em recrutas do Exército, moléstias infecciosas: sífilis e gonorréia.

Estes jovens soldados, ao serem liberados de suas atividades militares, foram esquecidos as suas próprias sortes e, até hoje, contando com mais de oitenta anos, são portadores das moléstias recebidas em testes de laboratórios.

Estas pobres figuras humanas - até hoje sem História - transmitiram a seus descentes a dor e os males que lhes foram impingidos pelos cientistas sequiosos de conhecer os efeitos do novo medicamento.

O episódio permite constatar os riscos que a ciência sem ética traz para a humanidade. Em países democráticos, assim como em estados totalitários, quando a anseia de obter novos conhecimentos rompe os limites da moralidade, tem-se o sacrifício de homens e mulheres como meras cobaias.
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Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador.

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