05 novembro 2011

A decisão do STF sobre a união estável homoafetiva: Uma concepção de democracia à luz da hermenêutica filosófica

Publicado em 10/2011 no site Jus Navigandi

por Caio Lucio Monteiro Sales

A decisão do Supremo só foi possível, no sentido em que se deu, se pensarmos no importante papel da hermenêutica filosófica, como processo interpretativo que insere o intérprete no mundo da vida, no mundo dos fatos, que faz com que o intérprete não se porte como mero espectador e que entenda aquilo que se põe à compreensão, bem como se autocompreenda.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a contribuição da hermenêutica filosófica para a concretização do princípio democrático, haja vista a crise da democracia representativa. Para tanto faremos uma breve exposição sobre a evolução da hermenêutica, da tradicional à filosófica. Em seguida procuraremos realizar uma breve análise acerca do conceito de democracia e iremos tecer críticas à democracia representativa. Por fim, com base no julgamento do STF no que toca à união homoafetiva no Brasil, procuraremos relacionar a hermenêutica filosófica à manifestação do princípio democrático, notadamente em razão da importância da linguagem e do diálogo.


ABSTRACT: This article aims to demonstrate the contribution of philosophical hermeneutics to the realization of the democratic principle, given the crisis of representative democracy. For this is a brief presentation on the evolution of hermeneutics, of the traditional to the philosophical. Then try to make a brief review about the concept of democracy and we will make criticisms of representative democracy. Finally, based on judgments of the Supreme Court regarding the homoaffective union in Brazil, try to relate philosophical hermeneutics for expression of the democratic principle, especially because of the importance of language and dialogue.


PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica Filosófica – Democracia – União Homoafetiva – Linguagem


KEYWORDS: Philosophical Hermeneutics - Democracy - Homoaffective Union - Language

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Breves noções sobre Hermenêutica: 2.1. Breves apontamentos sobre a evolução da hermenêutica; 2.2. A Hermenêutica Filosófica – 3. Breves reflexões sobre uma Democracia em crise – 4. A Hermenêutica Filosófica e o STF: a recente decisão sobre a união homoafetiva e a democracia – 5. Considerações Finais – Referências

1 INTRODUÇÃO

Ver. Ouvir. Falar. Ler. Entender. Compreender. Enfim, viver. A vida nada mais é do que um emaranhado de sentimentos, sensações, descobertas, conceitos, pré-conceitos. A vida nada mais é do que uma eterna espera pelo amanhã, tendo o passado como lição ministrada. A vida nada mais é do que um estar junto, um pensar sobre, um escolher entre, enfim, um ser e estar livre. A vida nada mais é do que um constante aprender, um constante interpretar.

Quando pensamos em liberdade, estamos a pensar em ausência de amarras, ausência de limites. O único limite razoável é o alter, o nosso semelhante. Mas e quando o nosso semelhante é, na verdade, diferente? Diferenças podem existir de vários tipos. Mas e quando essa diferença os transforma em uma minoria? O que fazer em um país de regime democrático, ao menos conceitualmente, um governo da maioria, quando uma minoria vive à margem da Lei?

Estamos a nos referir aos milhares de parceiros homossexuais existentes no Brasil e que viviam de forma clandestina no que dizia respeito ao mundo jurídico, uma vez que seus direitos como pessoas humanas iguais a todas as outras não eram respeitados. O pior é que tal desrespeito partiu da própria Lei que, no caso, não reconheceu a união entre homossexuais como entidade familiar desde a edição do Código Civil de 2002.

Pois bem, a única saída seria a alteração dessa Lei. Entretanto, a quem cabia, constitucionalmente e por legitimidade democrática, tal mister, quedou-se inerte em relação ao tema. Mas e aquela minoria, ficaria entregue à própria sorte? A saída foi ler a Lei de forma diferente, não literal, adaptando o sentido da norma aos fatos da vida, à evolução dos valores sociais, oxigenando aquele enunciado normativo em descompasso com a vida, enfim, um fato social patológico, para citar o conceito proposto por Émile Durkheim [01]. Essa nova leitura nada mais foi do que o resultado de um processo interpretativo, em outras palavras, um processo hermenêutico.

Com a nova leitura do dispositivo legal, aquela minoria passou a ter seus direitos reconhecidos: nascia, jurídica e formalmente, uma nova forma de entidade familiar: aquela resultante de uma união estável entre pessoas do mesmo sexo. E o mais interessante: em nada se alteraram os direitos da maioria. Não seria esse o verdadeiro sentido da democracia, ou seja, não a vontade da maioria, mas o alcance do bem estar de todos, incluindo o de uma minoria? E qual o papel da hermenêutica nessa busca por um novo padrão de democracia?

Pretendemos, com o presente ensaio, refletir acerca do papel da hermenêutica filosófica no processo de fortalecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil, notadamente em face das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhecem direitos a minorias, especificamente a recente decisão referente às uniões homoafetivas. Para tanto, discorreremos sobre a evolução da hermenêutica de forma geral, sobre a hermenêutica filosófica, passaremos por uma breve noção sobre o conceito de democracia, a crise que entendemos atingí-la e, finalmente, apresentaremos uma leitura da decisão do STF à luz da hermenêutica filosófica.

Nosso foco será a hermenêutica filosófica, entretanto, para chegarmos até ela, imprescindível que façamos um pequeno retorno, mesmo que breve, às origens e ao significado do termo em estudo.
2 BREVES NOÇÕES SOBRE HERMENÊUTICA

2.1 Breves apontamentos sobre a evolução da hermenêutica

Inicialmente, façamos um pequeno esforço no sentido de conhecer as raízes etimológicas do termo hermenêutica. Segundo Richard Palmer [02], "As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por <>, e no substantivo hermeneia, <>."

Existem correntes que relacionam o termo hermenêutica à mitologia grega. O deus alado Hermes teria um papel de mensageiro, aproximando os deuses dos homens e realizando como que uma transmutação das mensagens dos habitantes do Olimpo. Afinal, a linguagem dos deuses não era completamente inteligível aos seres mortais e, assim, necessitava ser traduzida, ou melhor dizendo, interpretada. Daí a relação entre o termo hermenêutica e a atividade de interpretação. Confirmando a etimologia e a origem mitológica do termo, Palmer continua:

A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Esta palavra, o verbo hermeneuein e o substantivo herrmeneia, mais comuns, remetem para o deus-mensageiro-alado Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou vice-versa?). E é significativo que Hermes se associe a uma função de transmutação - transformar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender. [03]

Podemos dizer que, no início, a hermenêutica se encontrava essencialmente relacionada a métodos de interpretação e entendimento de textos escritos, notadamente os textos sagrados. Seria o que poderíamos chamar de Hermenêutica Tradicional, em diferenciação à Hermenêutica Contemporânea, como veremos adiante.

Ligada ao judaísmo, a interpretação dos textos bíblicos estava mais centrada na literalidade dos textos, na exegese, com o objetivo de se chegar ao entendimento das palavras de Deus. Como podemos averiguar, tal interpretação ainda não era tida como uma interpretação de cunho jurídico.

Para chegarmos ao marco histórico da interpretação com um viés jurídico, podemos tomar por empréstimo a pesquisa de Silvério Carvalho Nunes [04], quando o autor se refere à origem da Hermenêutica Tradicional e diz que " Teve sua origem remota no pandectismo, que compilou os fragmentos que deram origem ao Corpus Juris Civilis, compreendendo o Digesto (Pandectas), as Institutas, o Código e as Novelas."

Acerca da Hermenêutica Tradicional, Silvério Carvalho Nunes, como fruto de sua pesquisa, ainda nos mostra que:

Esta orientação interpretativa inclui variado número de escolas, em que prevalece o fetichismo da lei e a visão isolada do texto, sem sua correlação necessária com o ordenamento e a realidade social. Os intérpretes desta escola, qualquer que seja sua denominação, colocam-se de frente para o texto da lei e de costas para o fato social. Com isso, transformam a interpretação em mero silogismo abstrato distante da realidade. Não consideram o fato social, que é próprio da dinâmica do Direito. Terminam por transformar o ordenamento positivo em algo estático, eterno, imutável, incapaz de resolver os conflitos sociais na sua plenitude, que se avolumam, em escala geométrica, no interior da sociedade. Resulta do método uma interpretação álgida do texto legal. [05]

Vale neste ponto, a título de esclarecimento, destacar que Nunes se vale do conceito de fato social, entretanto, pensamos, num sentido diferente do definido pelo francês Émilie Durkheim [06]:

"[...] toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais."

Entendemos que o fato social a que se refere o jurista brasileiro é, na realidade, a vida real, ou seja, o comportamento prático de uma sociedade, enfim, os fatos da vida. Aí reside a grande crítica a tal fase da hermenêutica, qual seja a de desconsiderar a evolução da vida, da consciência das pessoas, dos valores. Enfim, o Direito não pode estar apartado das coisas da vida, afinal, o próprio Direito faz parte da vida.

Aquele que interpreta precisa estar inserido no contexto, ou seja, não pode ser apenas um espectador. Como ainda veremos neste breve ensaio, felizmente, a hermenêutica filosófica acabou por romper com a visão matemática e cartesiana da hermenêutica tradicional. Contra essa visão matemática e lógica da hermenêutica tradicional assim se pronunciou Luiz Rohden [07]:

O ser humano não pode ser reduzido a uma máquina ou a um simples animal comandado por seus genes, instintos, carências, condicionamentos, forças culturais. Na concepção de filosofia que se reduz a um conjunto de símbolos matemáticos não há espaço para a liberdade, a criatividade, a ética, a política, a metafísica. Uma concepção de filosofia que não leva a sério esses aspectos antropológicos deveria ser revista e ampliada; afinal, o homem não vive ‘apenas de pão’ [...]

Como fica claro, a arte da interpretação merecia uma radical mudança, não no sentido de se desconsiderar totalmente a hermenêutica tradicional, mas complementando-a, adaptando-a à realidade social, da qual o intérprete não poderia estar dissociado. Foi o que aconteceu com a introdução da Hermenêutica Filosófica no mundo da interpretação jurídica.

2.2 A Hermenêutica Filosófica

Como dito, a hermenêutica filosófica veio a complementar a hermenêutica tradicional, basicamente em face das limitações do raciocínio cartesiano e reducionista relacionados a esta última. Nas palavras de Luiz Rohden [08]: "A hermenêutica filosófica não se legitima pela mera oposição quixotesca ao reducionismo da filosofia moderna, mas ela nasceu e desenvolveu-se justamente também pela limitação desta."

Podemos dizer que o primeiro grande expoente da hermenêutica filosófica foi o filósofo e teólogo protestante alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Schleiermacher trouxe a grande contribuição de desvincular a hermenêutica da exclusiva interpretação de textos escritos, notadamente os religiosos, concedendo ao seu projeto hermenêutico um viés de universalidade. Segundo o filósofo alemão:

[...] a hermenêutica não deve estar limitada meramente às produções literárias; pois eu me surpreendo seguidamente no curso de uma conversação (familiar) realizando operações hermenêuticas, quando eu não me satisfaço com o nível ordinário da compreensão, mas procuro discernir como, em um amigo, pode se dar a passagem de uma idéia à outra, ou quando questiono acerca das opiniões, juízos e tendências que fazem com que ele se expresse, sobre um assunto de discussão, deste modo e não de outro. [09]

A hermenêutica geral ou universal de Schleiermacher se dividiu em duas partes: a gramatical e a técnica, aí incluída a psicologia. [10] No que toca à parte gramatical, podemos dizer que nesse ponto o filósofo alemão acabou por lançar a semente de algo que, como veremos, representou o coração da hermenêutica filosófica como a trabalhamos hoje: a linguagem. E é o próprio Schleiermacher que nos dá esse sinal quando diz que: "A divisão principal, portanto, fica assim: primeiro a interpretação gramatical, depois a técnica. Gramatical sempre, porque obviamente no final tudo o que é pressuposto e tudo o que se encontra é linguagem". [11]

Com base em sua divisão conceitual da hermenêutica em duas partes, a gramatical e a técnica (ou psicológica), o projeto de Schleiermacher nos indicou que "para entender um texto, deve-se entabolar um colóquio como ele e, dessa forma, chegar ao fundo daquilo que suas palavras expressam de modo imediato [...]". [12]

Em tal colóquio com o texto, Schleiermacher entendia que assim se iria atingir a intenção do autor, considerado como o seu todo. Segundo os ensinamentos do teólogo alemão, a determinação desse todo se daria por dois caminhos, os quais seriam correspondentes à dúplice divisão de seu conceito hermenêutico. Pelo caminho gramatical ou objetivo, o todo seria o gênero literário do qual estivesse brotando o particular, ou seja, a passagem, a obra. Já pelo caminho técnico, subjetivo ou psicológico, a passagem ou a obra deveria ser vista como a ação daquele que é o autor, devendo a interpretação ter como ponto de partida o todo da vida do autor. [13]

Resumidamente, para Schleiermacher, a interpretação teria um caráter de universalidade, não estaria restrita a textos escritos, muito menos aos religiosos, e o método hermenêutico não se restringiria à matemática e lógica, importando uma identificação e contextualização da vida do autor, aí incluído o viés psicológico do projeto hermenêutico de Schleiermacher.

Outro grande representante da hermenêutica moderna, antes de chegarmos a Heidegger e, finalmente, a Gadamer, foi Wilhelm Dilthey (1833 - 1911). Resumidamente, o filósofo, psicólogo e pedagogo alemão, com amparo no historicismo, defendia que a compreensão de um texto dependia da compreensão do contexto histórico em que estivesse inserido o autor. Em outras palavras, não bastava apenas a compreensão com base na psicologia e vida do autor, deveria ser também investigado o contexto histórico no qual o autor estivesse inserido quando da produção de sua obra. Nesse sentido, podemos dizer que Dilthey chegou a complementar o pensamento de Schleiermacher.

Até agora verificamos que a interpretação, notadamente em Schleiermacher e Dilthey, esteve centrada na pessoa do autor, na compreensão do que o autor pretendeu transmitir, considerando sua vida, seus aspectos psicológicos e o contexto histórico em que estivesse inserido. E no que toca ao intérprete? O intérprete deveria manter uma posição externa, neutra, de observador, ou deveria se inserir no mundo que se desejasse interpretar? Pois bem, chegamos a Heidegger.

Martin Heidegger (1889-1976) foi um pensador alemão que trouxe enorme contribuição ao pensamento filosófico do século XX. Com a sua fenomenologia da existência, dedicou-se ao estudo do ser, ao qual chamou de Dasein. Influenciou sobremaneira o pensamento hermenêutico de Gadamer, como ainda se verá neste breve estudo.

Inicialmente, cabe ressaltar que o ponto principal no pensamento de Heidegger diz respeito à compreensão do ser, o Dasein como um ser no mundo, estar no mundo, ou seja, a infinitude do ser se relaciona com as diferentes condições de tempo e lugar a que se expõe tal ser no decorrer de sua história, de sua vida. A fenomenologia da existência se contrapõe à fenomenologia da essência ( o eidos, de Edmund Husserl [14]) basicamente no que toca à relação entre o ser e o tempo. Um exemplo para tentarmos esclarecer: para a fenomenologia da essência, um homem, em essência, é um ser humano; para a fenomenologia da existência, aquele mesmo homem, a depender do tempo e do espaço, poderá ser um pai, um avô, um marido, um aluno, um médico, ou seja, o ser no mundo dependerá das condições de tempo e espaço em que cada um esteja vivendo.

No que toca ao pensamento de Heidegger, quatro questões, que foram aproveitadas por Gadamer, hão de ser por nós destacadas: a questão da inserção do intérprete no mundo; a questão da visão prévia e concepção prévia; a questão da tradição e a questão do círculo hermenêutico.

Primeiramente vejamos a ideia de ser no mundo, de Heidegger, no sentido de que não há como dissociar o ser do mundo em que está inserido, dos valores sociais do grupo a que pertence. Uma análise do ser dissociado do mundo seria uma análise afeta à fenomenologia da essência, proposto por Husserl, e contraposta pela fenomenologia da existência, de Heidegger, conforme já dissemos e exemplificamos anteriormente.

Com relação à visão prévia e concepção prévia, no pensamento de Heidegger elas existem justamente pela inserção do ser no mundo. Não havendo como dissociar o ser do mundo, não há como isolar seu conhecimento prévio acerca daquilo que o cerca.

No que concerne à tradição, ela se encontra presente no pensamento de Heidegger no que diz respeito ao aspecto historicidade, pois o ser é conhecido a partir da linha dos acontecimentos de sua trajetória.

A questão concernente ao círculo hermenêutico foi uma das principais contribuições de Heidegger para a hermenêutica gadameriana. O intérprete possui uma pré-compreensão daquilo que vai procurar compreender. A compreensão se constitui a partir da tradição do intérprete (não só a história já vivida pelo intérprete, mas também a história sendo vivida, numa ideia de movimento, nunca de estaticidade). Como a vida é dinâmica e a sociedade também, ao atingir a compreensão, a pré-compreensão é trazida ao confronto com os fatos da vida. A partir daí, a pré-compreensão é mantida ou expandida, alargando o círculo hermenêutico. Luiz Rohden [15] assim resumiu seu entendimento acerca do círculo hermenêutico:

Se para os lógicos a circularidade da hermenêutica é viciosa e deve ser eliminada, para nós ela assume uma dimensão positiva e deve ser conservada, retificada e ampliada. O pré-conceito, a pré-compreensão podem ser retificados, ratificados e/ou ampliados, e o processo filosófico comporta uma circularidade inelutável que não é viciosa, porque não pretende esconder ou simplesmente confirmar os pré-juízos e pré-concepções, mas trazê-los à luz, no confronto com o real (sujeito, mundo), corrigindo-os e/ou alargando seus horizontes. Não é vicioso porque a hermenêutica não trata de problemas estritamente lógicos, mas está às voltas com a totalidade de sentido da existência humana, das ciências.

Como já tivemos a oportunidade de dizer, outro filósofo alemão seguiu a linha heideggeriana e se despontou como o grande nome da hermenêutica filosófica do século XX – Hans-Georg Gadamer. Gadamer viveu de 1900 a 2002 e teve em sua obra Verdade e Método, publicada na Alemanha em 1960, o grande marco de sua hermenêutica filosófica. Como dito, alguns pontos do pensamento de Gadamer são advindos do pensamento fenomenológico existencialista de Heidegger: a questão da inserção do intérprete no mundo, a questão da visão prévia e concepção prévia, a questão da tradição e a questão do círculo hermenêutico.

No entanto, alguns pontos inseridos por Gadamer em seu modelo de hermenêutica filosófica merecem ser comentados, mesmo que de forma sucinta: a fusão de horizontes, o enquanto hermenêutico e a experiência da linguagem, talvez o ponto mais importante da hermenêutica filosófica gadameriana e que mais irá nos interessar nestas breves reflexões.

Quando o intérprete se põe a interpretar algo, sua pré-compreensão, ou seja, seu horizonte de percepção acerca daquele algo acaba por se contrapor ao sentido do mundo dos fatos, do mundo da vida, bem como à percepção do autor daquele algo que se pretende interpretar. Aí, o intérprete é incluído no processo interpretativo: é a fusão de horizontes. Sobre a fusão de horizontes, assim lecionou Lênio Streck [16]:

O caráter da interpretação de Gadamer é sempre produtivo. É impossível reproduzir um sentido. O aporte produtivo do intérprete forma inexoravelmente parte do sentido da compreensão. Como já se viu, é impossível o intérprete se colocar em lugar do outro. O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes [...]

O enquanto hermenêutico é, na verdade um nome dado por Luiz Rohden à dinamicidade do processo interpretativo. A pré-compreensão se transmuta em compreensão, a qual poderá se modificar, a depender da evolução do mundo da vida. Assim se pronunciou Luiz Rohden [17] sobre o enquanto hermenêutico:

Gadamer mostrou que, para Heidegger, o aspecto fundamental da compreensão, ‘o que é expressamente compreendido, tem a estrutura de alguma-coisa-como-alguma-coisa’, designando-a estrutura-como. A estrutura ‘como’ pertence à ‘constituição existencial a priori da compreensão’. Nós preferimos utilizar a expressão enquanto – termo que indica movimento, inapreensibilidade, sem um ponto fixo, onde princípio e fim implicam-se e, por outro lado, apontam um algo ainda não dito a se dizer. O enquanto, o Zwischen, entre o dito e o não-dito possui tanto a conotação de tempo (devir) quanto de essência (ser), isto é, tanto de provisório quanto de intermediário, sem repouso, por um lado, e definitivo, por outro. (grifos do autor)

A experiência da linguagem é o que podemos considerar o ponto mais importante tendo em vista o que procuramos demonstrar neste ensaio. Para a hermenêutica filosófica a linguagem pode ser comparada ao ar, que sustenta o voo da pomba, mas que não somente sustenta, como também é imprescindível para a própria vida da pomba. [18]

Acerca da importância da linguagem no processo hermenêutico, assim ensinou Gadamer [19]:

[...] a linguagem humana deve ser pensada como um processo vital particular e único, pelo fato de que no entendimento lingüístico se torna manifesto o ‘mundo’. O entendimento lingüístico coloca aquilo sobre o que ele ocorre diante dos olhos dos que participam nele, como se faz com um objeto de controvérsia que se coloca no meio das partes. O mundo é o solo comum, não palmilhado por ninguém e reconhecido por todos, que une a todos os que falam entre si. Todas as formas da comunidade de vida humana são formas de comunidade lingüística, e mais ainda, formam linguagem.

Frisando a importância da linguagem na hermenêutica filosófica gadameriana, assim foram as palavras de Luiz Rohden [20]:

A linguagem não constitui um meio entre outros, uma ferramenta que os seres humanos utilizam apenas para se comunicar. O conhecimento de nós mesmos e do mundo realiza-se na e com a linguagem, que é a nossa própria, da qual não podemos nos desvencilhar como de um instrumento qualquer.

Por fim, cabe ressaltar que não há como falarmos em linguagem de forma divorciada do diálogo. Conforme a hermenêutica de Gadamer, para interpretar é imprescindível ouvir o outro. A partir daí, ouvindo o outro, as pré-compreensões do intérprete poderão ser mantidas, ou não. Em resumo, "a linguagem e o diálogo constituem o núcleo central da hermenêutica filosófica gadameriana". [21]

Pois bem, após essa uma breve noção acerca de aspectos de tamanha relevância, quais sejam a linguagem e o diálogo hermenêutico, dentre outros expostos, podemos nos dedicar a um breve estudo sobre um tema que muito interessa em um Estado Democrático de Direito e que tem no processo de interpretação do Direito e das coisas do mundo a sua principal forma de manifestação – a Democracia.
3 BREVES REFLEXÕES SOBRE UMA DEMOCRACIA EM CRISE

Quando falamos em democracia, logo pensamos em algo bom. Alguma coisa de significado diferente de ditadura. O antagonismo entre democracia e ditadura que nos vem à mente, por si só já justificaria a associação do termo democracia a um sentimento bom, de liberdade, igualdade, enfim, de uma sociedade, senão perfeita, bem próxima da perfeição. Talvez assim seja se considerarmos um conceito formal de democracia, já que o aspecto material merece algumas reflexões.

A origem etimológica da palavra democracia é grega, sendo a junção de demos, que significa povo, com kratos, que vem a significar poder ou governo. A junção nos traz o que comumente se entende por democracia: governo do povo. É o governo do povo, que o pode exercer diretamente ou por meio de representantes eleitos para tal, que é o mais comum.

Apesar de não nos dedicarmos, neste breve estudo, aos aspectos históricos da democracia, podemos destacar que ela é um regime de governo surgido na Grécia antiga, tendo sido referenciada por Aristóteles, mas que é própria do século XX. Isso porque, até então, era mais comum o poder estar concentrado nas mãos de um soberano, normalmente um rei ou imperador, que decidia pelo povo.

José Afonso da Silva [22] nos ensina que, equivocadamente, a doutrina afirma que a democracia se apoia em três princípios fundamentais: o da maioria, o da igualdade e o da liberdade. O equívoco, segundo o jurista, estaria no fato de não se tratar a maioria de princípio e sim de uma técnica para justificar a tomada de decisões pelo governante, uma vez que a técnica eleitoral utiliza o critério da maioria no processo de escolha política. Com relação aos aspectos da igualdade e liberdade, afirma também que não são princípios, e sim valores democráticos. A democracia seria, na verdade, um instrumento para a realização da liberdade e da igualdade no plano prático.

O mais correto, segundo o referido autor seria dizer que:

A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios fundamentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: (a) o da soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder, que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; (b) a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja efetiva expressão da vontade popular; nos casos em que a participação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da representação. [23]

Com base no trecho acima transcrito, passemos a uma breve análise crítica do caso brasileiro, basicamente com relação aos aspectos soberania popular e participação.

Iniciemos pela análise do princípio da soberania popular. Entendemos que tal princípio está intimamente relacionado com o conceito de democracia proposto por Lincoln, referenciado por José Afonso da Silva [24], como sendo o governo do povo, pelo povo e para o povo. Assim preceitua a Constituição Federal em seu art. 1º, parágrafo único [25].

Nesse sentido nos esclarece José Afonso da Silva:

Governo do povo significa que este é fonte e titular do poder (todo poder emana do povo), de conformidade com o princípio da soberania popular que é, pelo visto, o princípio fundamental de todo regime democrático. Governo pelo povo quer dizer governo que se fundamenta na vontade popular, que se apoia no consentimento popular; governo democrático é o que se baseia na adesão livre e voluntária do povo à autoridade, como base da legitimidade do exercício do poder, que se efetiva pela técnica da representação política (o poder é exercido em nome do povo). Governo para o povo há de ser aquele que procure liberar o homem de toda imposição autoritária e garantir o máximo de segurança e bem-estar.

A crítica que podemos fazer ao aspecto soberania reside no fato de que, materialmente, a decisão sobre os rumos da nação se encontra nas mãos de poucos, que são, teoricamente, os representantes desse povo. Ocorre que, como é sabido, o processo eleitoral brasileiro, a despeito de ser aberto, em termos de elegibilidade passiva, ou seja, da capacidade de ser eleito, é um processo caracterizado pelos elevados custos das campanhas eleitorais. O que estamos querendo dizer é que, no Brasil, não é muito incomum termos notícias de campanhas eleitorais financiadas por grupos minoritários de grande poder econômico, político e social. É claro que exceções ao que acabamos de afirmar existem, mas não são em grande número.

Deixando de lado o aspecto econômico, um outro ponto que podemos destacar no que toca ao processo de representação democrática no Brasil diz respeito ao fator educação. Em um país em crescimento, mas ainda com baixos índices de educação no seio de sua população, hão de ser considerados alguns aspectos.

Em primeiro lugar, a educação é a porta de entrada ao mundo da informação. Ora, a melhor escolha em termos de representação política será feita por aquele que melhor estiver inteirado de como funciona o regime democrático, dos direitos inerentes ao exercício direto e indireto do poder pelo povo, enfim, vota melhor quem conhece todas as regras do jogo democrático. Não estamos aqui a falar do analfabetismo formal total, aquele que exclui pelo fato de não se saber ler ou escrever, estamos nos referindo ao analfabetismo intelectual, ou seja, aquele que exclui em face da baixa capacidade de autovalorização, de autoestima, aquele que exclui em razão da falta de vontade de luta por uma vida melhor, pelo conformismo em ser subjugado por quem tem conhecimento e domina a linguagem. E conhecimento, em pleno século XXI, é poder.

Um segundo aspecto, no que diz respeito à educação, está relacionado com a diferença de realidade entre aquele que vota e aquele que se elege. Aqui mais uma vez entendemos que existem exceções ao que se vai afirmar, mas, como já dito, não são em número expressivo. Em face do baixo nível de educação da grande maioria que vota, podemos perceber que há uma grande diferença da realidade social daqueles que são votados. Normalmente, o nível sociocultural dos representantes do povo é bastante diferente ( o dos representantes, na maioria dos casos, é superior) do dos integrantes da grande massa votante. Tal distanciamento entre as duas realidades acaba por causar um descompasso entre o atendimento das necessidades do povo e as necessidades de grupos socioeconômicos mais privilegiados, que acabam sendo atendidos prioritariamente.

Considerando o que arriscamos a afirmar acima, o povo, já numericamente diminuído em face das limitações da Constituição no que toca à elegibilidade ativa, acaba por ser representado por pessoas que na verdade não fazem parte e não vivem a mesma realidade da grande maioria da população de um país, frisemos, em desenvolvimento, mas admitamos, ainda subdesenvolvido, notadamente no aspecto humano.

São essas as críticas que estendemos ao aspecto participação, ou seja, a participação na democracia brasileira acaba por ser um processo que, apesar de formalmente democrático, é materialmente a participação de um povo que, na verdade, não tem acesso ou conhecimento de todo o aparato de poder que envolve as campanhas eleitorais.

Diante das críticas que acabamos de tecer, podemos dizer que nossa democracia está em crise. A crise se mostra quando os parlamentares não comparecem às sessões de votação, quando as votações de projetos importantes para o povo dependem de alianças políticas e de ofertas de cargos públicos, quando os escândalos de corrupção aparecem e não são sequer investigados. Ora, tudo isso está nos jornais, como notícia quase que rotineira. No processo de escolha dos seus representantes, será que tal quadro foi o desejado pelo povo na sua opção democrática? E não estamos a nos referir a períodos estanques, tudo se repete a cada mandato e a cada legislatura.

Nosso Estado Democrático de Direito também pode ser formalmente perfeito, mas materialmente também se encontra em crise. Para explicar qual seria essa crise, examinemos o conceito de democracia apresentado por José Afonso a Silva [26]:

[...] a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de convivência, primeiramente para denotar sua historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.

Quanto à primeira parte do conceito, já apresentamos nossa crítica ao governo do povo, pelo povo e em proveito do povo, notadamente em face dos aspectos da soberania popular e participação. O que nos incomoda é a segunda parte no que toca ao respeito e à tolerância entre os conviventes. Ora, se o governo fosse realmente do povo e para o povo, deveríamos contar com uma legislação que proporcionasse a todos condições de concretização de tais aspirações democráticas. Mas não é que percebemos no mundo da vida.

Aqueles que são os representantes do povo acabam por se quedar inertes em determinados assuntos que dizem respeito a algumas minorias e não legislam com a velocidade necessária para que o mundo das leis acompanhe a evolução do mundo da vida. Tal descompasso gera angústia, discriminação e uma vida à margem do Direito por parte de alguns. Um exemplo bastante atual é a questão das uniões homoafetivas, em face do tratamento dado pelo Código Civil [27] ao assunto, só admitindo a união estável entre casais heterossexuais e negando caráter de entidade familiar às uniões homoafetivas.

Não podemos nos esquecer de que o Estado Democrático de Direito pressupõe um aspecto de extrema importância: o respeito à dignidade da pessoa humana implícito na própria palavra Direito.

Mas em uma democracia como a entendida por José Afonso da Silva como de respeito e tolerância, além se se basear na dignidade da pessoa humana, o direito a uma vida normal e amparada no Direito pelos parceiros homossexuais não deveria ser uma prioridade na agenda dos representantes do povo?

Na ausência de resposta por parte do Legislativo, quem e como se poderia corrigir o descompasso da legislação em um assunto tão relevante quanto o da união homoafetiva? A resposta só pode ser uma: o quem restou, constitucionalmente, ao Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal; o como ficou com a aplicação do processo hermenêutico, notadamente no que concerne à hermenêutica filosófica.
4 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O STF: A RECENTE DECISÃO SOBRE A UNIÃO HOMOAFETIVA E A DEMOCRACIA

Podemos citar como um recente exemplo do descompasso entre o mundo dos fatos e o mundo legislativo a situação das uniões homoafetivas e seu tratamento, ou melhor, sua falta de tratamento pela legislação brasileira, deixando milhares de pessoas em situação marginal à Lei.

Não podemos tratar a questão da homossexualidade como algo recente e privativo do Brasil. Não nos atrevemos a traçar uma origem histórica para tal questão, mas nos arriscamos a dizer que se trata de um assunto ligado à própria humanidade. O que está em jogo ou são fatores ligados à biologia, envolvendo a genética, ou são outros ligados à liberdade de escolha de orientação sexual por cada pessoa. Mas em qualquer caso o que a referida minoria busca é algo intrínseco ao valor dignidade da pessoa humana: a felicidade, ou, ao menos, o direito de encontrar a própria felicidade.

Em relação ao tema família, a Constituição de 1988 [28] inovou ao reconhecer como entidades familiares outros tipos de uniões que não fossem as relativas ao casamento. Foram tais novidades, ou seja, foram também reconhecidas como entidades familiares: a formada pela união estável e a família monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer um dos pais e seus descendentes. Frisemos que a união estável para o Constituinte de 1988 era aquela formada entre homem e mulher, ou seja, somente entre pessoas de sexos diferentes. É importante também ressaltar que, hoje, o conceito de afetividade ganhou corpo e destaque no debate jurídico.

Em busca de arrefecer sua angústia e ver reconhecidos seus direitos, em face de uniões baseadas no afeto e na convivência contínua, pública e duradoura, vários conviventes homossexuais recorreram ao Judiciário. Em primeira e segunda instâncias o reconhecimento de direitos patrimoniais, sucessórios, previdenciários e relativos à adoção começaram a não ser tão raros. Entretanto, algo deveria ser feito para que a questão fosse decidida de forma definitiva. E como o representante maior do povo, o Legislativo, não atuava, restou ao STF tal missão. A evolução jurisprudencial sobre o tema, notadamente no pioneiro Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, bem como o papel do Judiciário na correção do descompasso entre a Lei e os fatos foi retratada em obra de autoria de Maria Berenice Dias: [29]

A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito do Direito de Família as relações homoafetivas, como entidades familiares, é um marco significativo. Inúmeras outras decisões despontam no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar à margem da justiça. Consagrar os direitos em regras legais talvez seja a maneira mais eficaz de romper tabus e derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei não vem, é o Judiciário que necessita suprir a lacuna legislativa, mas não por meio de julgamentos permeados de preconceitos ou restrições morais de ordem pessoal.

Em 5 de maio de 2011, em julgamento histórico, os Ministros do Supremo Tribunal Federal colocaram um ponto final na discussão relativa à regularização das uniões homoafetivas no Brasil.

Naquela data ocorreu a apreciação e julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277/DF e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132/RJ. A ADI, proposta pela Procuradoria-Geral da República, pedia o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, com a ampliação dos direitos conferidos aos companheiros heterossexuais nas uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. A ADPF, proposta pelo governador do estado do Rio de Janeiro, pedia, com amparo na isonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana, que o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil [30], fosse estendido às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis estaduais.

O Relator foi o Ministro Ayres Britto, que teve seu voto acompanhado por todos os outros integrantes daquela Corte Suprema. Dessa forma, o Plenário do STF decidiu pela procedência das ações propostas e com efeito vinculante, dando interpretação conforme a Constituição no sentido de excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que pudesse vir a impedir o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar.

O que podemos constatar é que a decisão do Supremo só foi possível, no sentido em que se deu, se pensarmos no importante papel da hermenêutica filosófica, como processo interpretativo que insere o intérprete no mundo da vida, no mundo dos fatos, que faz com que o intérprete não se porte como mero espectador e que entenda aquilo que se põe à compreensão, bem como se autocompreenda.

Podemos destacar no julgamento do STF, em face do processo hermenêutico envolvido, um ponto de excepcional importância em sede da hermenêutica filosófica, notadamente a proposta por Hans-Georg Gadamer: a questão da linguagem e do diálogo hermenêutico.

Podemos dizer que, no caso específico em estudo, a linguagem e o diálogo hermenêutico funcionaram como legítimas formas de manifestação do princípio democrático em sede de um poder destituído de legitimidade democrática, mas detentor de legitimidade argumentativa, em face da fundamentação de suas decisões. Estamos a nos referir à presença dos diversos Amicus curiae que se pronunciaram durante o julgamento. Associações, entidades, ou seja, representações dos interesses de uma minoria tiveram voz e foram ouvidas por aqueles que tinham por dever a interpretação da norma legal. Aí percebemos claramente a presença da alteridade, do diálogo, o ouvir o outro. Foi o que aconteceu naquele julgamento, o outro, a minoria foi ouvida. O horizonte do intérprete se fundiu ao horizonte do Constituinte de 1988 e do legislador de 2002, no que toca ao Código Civil e, dessa forma, considerando o mundo dos fatos, chegou-se a uma compreensão: a partir daquele julgamento as uniões homoafetivas saíam da clandestinidade jurídica e passavam a ser tratadas como entidade familiar.

Foi a hermenêutica filosófica, com base principalmente na linguagem e no diálogo, que acabou por funcionar como instrumento de concretização do espírito democrático. Mas não um espírito democrático de uma maioria que elege seus representantes, e sim, um espírito democrático em que se deve ressaltar o respeito ao outro, a convivência pacífica, mesmo que esse outro viva de forma diferente da maioria.

Por meio da hermenêutica filosófica, uma minoria foi ouvida e passou a ter direito de buscar sua felicidade de uma forma plena, algo que não lhe fora proporcionado por aqueles legitimamente (ao menos formalmente) eleitos para legislar em nome do povo, heterogêneo e composto internamente por uma maioria e uma minoria em diversos aspectos e formas de viver e pensar.

Assim como a semente de uma árvore, que enterrada sob a terra, encontra a superfície guiada pela luz do sol; a semente da democracia, ainda que enterrada sob um processo representativo em crise, encontrou a superfície, guiada pelo poder da linguagem e do diálogo presentes na hermenêutica filosófica.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste pequeno ensaio procuramos demonstrar a contribuição da hermenêutica filosófica para a concretização do princípio democrático, haja vista a crise da democracia representativa, com ênfase no julgamento do Supremo Tribunal Federal referente à questão da união homoafetiva no país.

Verificamos uma breve evolução da hermenêutica, iniciando pela hermenêutica tradicional, nascida da interpretação dos textos bíblicos e chegando à hermenêutica filosófica. Foram, de forma panorâmica, expostos alguns pontos essenciais do pensamento de Shleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer.

Especial atenção foi dada à Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer, basicamente no que toca ao círculo hermenêutico, à fusão de horizontes e à importância da linguagem e do diálogo hermenêutico.

Em seguida discutiu-se a questão da democracia e a crise por que passa a democracia representativa no Brasil, notadamente em face da mínima representatividade de fato existente, haja vista o poder de uma minoria que domina o cenário político do país.

Por fim, também de forma sucinta, a recente decisão do STF no que toca ao tema da união homoafetiva foi analisada e relacionada com a manifestação da democracia em face do uso da linguagem e do diálogo no processo hermenêutico, considerando a hermenêutica filosófica, haja vista a inércia do Poder com legitimidade formal para elucidar a questão de forma definitiva em prol da minoria em questão.

REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade – o que diz a Justiça!: as pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2011.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999.

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Idéias e Letras, 2006.

NUNES, Silvério Carvalho. Legalidade Justa e Moralidade Administrativa. Belo Horizonte: Decálogo, 2005.

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1999.

ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002.

SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica – Arte e Técnica da Interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

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Notas

1. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 40.

2. PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 23.

3. Ibid., p. 24.

4. NUNES, Silvério Carvalho. Legalidade Justa e Moralidade Administrativa. Belo Horizonte: Decálogo, 2005. p. 240.

5. Ibid., p.240.

6. DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2011. p. 40.

7. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002. p. 44.

8. Ibid., p. 18.

9. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica – Arte e Técnica da Interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 33.

10. GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 126.

11. SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica – Arte e Técnica da Interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 69.

12. GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica. Tradução de Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 133.

13. Ibid., p. 134.

14. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Idéias e Letras, 2006.

15. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002. p. 173.

16. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 213.

17. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002. p. 169.

18. Ibid., p. 298.

19. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I – Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 647.

20. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Unisinos, 2002. p. 242.

21. Ibid., p. 222.

22. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 129-131.

23. Ibid., p. 131.

24. Ibid., p. 134.

25. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

26. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 126.

27. Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. [...]

28. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes [...]

29. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade – o que diz a Justiça!: as pioneiras decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que reconhecem direitos às uniões homossexuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 19.

30. Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. [...]

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Caio Lucio Monteiro Sales é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em Direito do Estado pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Salvador

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
SALES, Caio Lucio Monteiro. A decisão do STF sobre a união estável homoafetiva: Uma concepção de democracia à luz da hermenêutica filosófica. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3040, 28 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: ....

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