06 novembro 2011

O transconstitucionalismo como instrumento de diálogo entre o Secularismo e o Islã

O transconstitucionalismo como instrumento de diálogo entre o Secularismo e o Islã

Publicado em 11/2011

Por Bruno de Oliveira Lira

A reconstrução do significado das normas constitucionais de um Estado passa a ter uma nova fonte para a sua modernização: as decisões transnacionais ou a solução/experiência de outros Estados que passaram pelo mesmo problema.

1. Introdução

Em um mundo globalizado, muitos dos problemas constitucionais a serem enfrentados já não mais se restringem aos limites geográficos de um único país. Acordos internacionais criam novos direitos e novas instâncias de jurisdição para a proteção das liberdades individuais.

Com isso, o grande problema da atualidade reside na determinação de quem dará a última palavra, ou seja, a solução final para estas questões. Marcelo NEVES (2009) aborda tal problema em sua última obra – Transconstitucionalismo. Através da idéia de cooperação e diálogo entre as ordens jurídicas envolvidas, é possível que, em um processo de aprendizado, achem-se soluções mais apropriadas para os problemas transnacionais.

Uma destas questões que vem tomando um maior vulto cotidianamente é a manifestação da religiosidade na esfera pública, seja feita pelo Estado (a utilização de símbolos religiosos em repartições públicas afeta a minha liberdade de crença?) ou pelos particulares (veda-se ou não a utilização do véu islâmico?). Em especial, os imigrantes/descendentes de islâmicos são os que mais têm sentido este problema na pele. Isto se deve ao atual estado de desconfiança que o mundo ocidental tem depositado sobre eles.

Como se pode perceber, tais questões têm um forte assento nos direitos humanos. Há uma clara contraposição entre o secularismo do Estado e a liberdade de crença e consciência dos indivíduos.

Restando demonstrada, nestas breves linhas, a relevância do tema, propõe-se neste trabalho mostrar como o transconstitucionalismo vem e pode ser utilizado para dar uma resposta a este conflito. Através dele, os limites do secularismo estatal vêm sendo desafiados e redefinidos.

Inicia-se o trabalho com uma sucinta exposição dos principais conceitos que envolvem a questão: que vem a ser o transconstitucionalismo, qual a visão moderna do secularismo e como melhor entender o Islã (será ele uma simples religião, uma cultura ou uma ideologia?). Por fim, demonstra-se como o transconstitucionalismo vem trabalhando com esta temática, através de alguns casos concretos que foram julgados pela Corte Européia de Direitos Humanos.

2.O que é o Transconstitucionalismo?

"Transconstitucionalismo" tem um significado específico para Marcelo NEVES (2009). A princípio, tal termo poderia deixar a entender que o autor pernambucano defenderia a formação de uma constituição supranacional, ou seja, uma constituição que transbordasse das fronteiras dos Estados. No entanto, segundo sua visão, o termo deve ser entendido como uma proposta de compreensão do diálogo existente entre sistemas constitucionais.

O modelo transconstitucional rompe com o dilema "monismo/pluralismo". A pluralidade de ordens jurídicas implica, na perspectiva do transconstitucionalismo, a relação complementar entre identidade e alteridade. As ordens envolvidas na solução do problema constitucional específico, no plano de sua própria autofundamentação, reconstroem continuamente sua identidade mediante o entrelaçamento transconstitucional com a(s) outra(s): a identidade é rearticulada a partir da alteridade. Daí por que, em vez da busca de uma Constituição hercúlea, o transconstitucionalismo aponta para a necessidade de enfrentamento dos problemas hidraconstitucionais mediante a articulação de observações recíprocas entre as diversas ordens jurídicas da sociedade mundial. (NEVES, 2009, p. XXV)

Assim, o transconstitucionalismo pode ser visto como sendo o "entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional" (NEVES, 2010, p. 1). A principal característica deste processo é o fato de uma mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada, concomitantemente, por diversas ordens. Hodiernamente, os problemas de direitos fundamentais e limitação de poder são os mais propensos a gerarem tal espécie de diálogo.

Neste diapasão, pode-se pensar que todos os Estados Nacionais compõem um sistema social global. Pela teoria dos sistemas, esta sociedade global é composta por vários outros sistemas (subsistemas) diferenciados entre si, onde se pode destacar o sistema jurídico. O que vai caracterizar tal subsistema nesta sociedade global é o fato dele também ser multicêntrico, sendo caracterizado por NEVES (2009, p. 235) como sendo um "sistema de níveis múltiplos", no qual "nenhuma das ordens pode apresentar-se legitimamente como detentora da ultima ratio discursiva" (NEVES, 2009, p. 237).

Como bem aponta Alexandre COSTA (2010, p. 9), a inter-relação entre as diversas ordens jurídicas não se dá segundo um modelo interno/externo, onde cada ordem trataria as outras como externas ao sistema, mas segundo um modelo centro/periferia, ou seja, cada ordem enxerga as demais como integrantes do mesmo sistema global. Assim, a relação transconstitucional entre ordens jurídicas

não resulta apenas das prestações recíprocas (relações de input e output), interpenetrações e interferências entre sistemas em geral, mas sobretudo de que as diversas ordens jurídicas pertencem ao mesmo sistema funcional da sociedade mundial, sistema que pretende reproduzir-se primariamente como base em um mesmo código binário, a diferença entre lícito e ilícito. (NEVES, 2009, p. 125).

É a partir do preenchimento do conteúdo do código binário que se abre a possibilidade de convívio construtivo entre as ordens jurídicas em entrelaçamento, na busca da solução do problema transconstitucional. Atualmente, conforme ressaltado anteriormente, um dos problemas que vem sendo alvo desta "análise transconstitucional" é o secularismo.

3.Secularismo

Secularismo é uma das principais características das sociedades ocidentais contemporâneas. Ele é geralmente entendido como sendo a separação explícita da religião do funcionamento do Estado e da regulação da sociedade civil. De uma forma bem simplista, pode-se colocar que o conceito de secularismo é composto tanto pela idéia da separação entre o Estado e a religião (secularismo-como-separação), como pela própria neutralidade estatal em face de questões religiosas (secularismo-como-neutralidade).

Apesar de serem largamente aceitas, tais idéias já não representam um significado totalizante para o termo. Há uma forte tendência atual para incrementar o seu conteúdo, buscando associá-lo a outras idéias, tais como liberdade de consciência e religião, tolerância, pluralismo, igualdade, razão, democracia, entre outros.

Maurice BARBIER (2010) traz um exemplo desta tendência, através do resultado final da Comissão Stasi, que foi instituída na França em dezembro de 2003. Tal comissão recebeu a incumbência de esclarecer o conceito e definir as aplicações do secularismo. Logo na introdução do seu relatório final, a comissão aponta que o secularismo "descansa em três valores indissociáveis: liberdade de consciência, igualdade na lei das crenças e religiões e neutralidade das autoridades estatais" [01]. Como se vê, tal definição já acrescenta, ao conceito inicialmente apresentado do secularismo, as noções de liberdade de consciência e igualdade, perante a lei, das crenças e religiões.

Amélie BARRAS (2010) lembra que o secularismo é um fenômeno social que assume diferentes formas nos vários países. Enquanto política pública, o secularismo é fortemente influenciado pelas experiências políticas e históricas de cada povo. Provando tal fato, Carrie KOBOLD (2010, p. 20) traz, em sua tese de doutoramento, um interessante quadro que demonstra a diversidade do relacionamento entre Estado e Religião:

                                     Estados          Estados          Estado            Estado

                                     Teocráticos    com uma          Secular           contrário
                                                              religião                                     à religião
                                                              estabelecida


Legislação e              Baseados        Secular              Secular          Secular
judiciario                   na religião
 
Atitude do Estado     Oficialmente     Oficialmente   Oficialmente         Oficialmente
Estado em face            favorece           favorece         não favorece        é hostil a todas
das religiões               a uma delas       a uma delas    a nenhuma delas   as religiões
 
Exemplos            Vaticano, Irã              Grécia,              EUA, França,      China, Coréia
                             e Arábia Saudita       Dinamarca      Turquia,               do Norte e
                                                                 Inglaterra         Senegal                Cuba
                                                                                           e Índia

Total                      10                              100                        95                          22
 
   
Pela tabela acima, constata-se que, apesar do termo "estado secular" designar um conceito único, na prática, há uma grande quantidade de espécies em sua categoria.                                                         

Rajeev BHARGAVA (2010) faz algumas distinções entre as diferentes espécies de estados seculares. Primeiramente, ele define o Estado Teocrático, como sendo aquele onde há uma união com uma ordem religiosa particular. Estes Estados são governados pelas próprias lideranças religiosas, tendo como base as leis divinas.

Tais estados diferem daqueles que estabelecem uma (ou várias) religião (ões). Nestes, a religião possui um reconhecimento oficial e legal. Apesar do benefício mútuo gerado por essa aliança (religião e Estado), não é a ordem religiosa que governa o país. Há um mínimo de diferenciação institucional entre estas instituições.

Por sua vez, os Estados Seculares distinguir-se-iam dos anteriores por três níveis de desconexão: (1º) fins, (2º) instituições e (3º) política pública e direito. Para BHARGAVA (2010, p. 7)

No Estado Secular, nenhum status oficial é dado para a religião. Nenhuma comunidade religiosa pode dizer que o Estado lhe pertença exclusivamente. Ninguém é compelido a pagar taxas por razões religiosas ou para receber instruções referentes à fé. Nenhum subsídio é garantido, de forma automática, para as instituições religiosas. [02]

É, justamente, no terceiro nível de distinção (política pública e direito) onde se enquadram a França e a Turquia. A relevância destes países para o presente trabalho reside no fato de ser nestes Estados que o secularismo está passando por um forte momento de tensão.

Analisando especificamente o Estado francês, vemos que o secularismo é um dos seus fundamentos mais importantes. Ao garantir que as instituições francesas sejam seculares, a França acaba por assegurar: liberdade de consciência e de adoração, liberdade para as igrejas perante a lei (não há nenhuma religião oficial), direito a locais de culto, neutralidade das instituições em face das religiões e liberdade de educação. Tal separação, apesar de, inicialmente, ter sido difícil de ser aceita por grande parte da população, levou gradualmente para um estado de coesão social em volta dos valores e princípios seculares. Nas palavras do Presidente Jaques Chirac: “O local privilegiado para encontros e compartilhamentos, onde todos podem se juntar e trazer o melhor para a comunidade nacional. É a neutralidade deste espaço público que habilita diferente religiões a co-existirem harmoniosamente” [03]. (apud BARRAS, 2010, p. 9)

Um dos motivos de tão grande relevância do secularismo é o fato de muitos franceses acreditarem que os indivíduos alcançam a liberdade "através do" e não "do" Estado. Isso faz com que ele (Estado) seja considerado o responsável pela preservação do bem comum e da ordem pública. Com isto, um de seus deveres é regular e restringir a liberdade religiosa para a esfera particular quando necessário para preservação de tais objetivos.

A grande preocupação atual do estado francês é com relação ao Islã. Como a França recusa-se a adotar qualquer tipo de política multicultural de incorporação dos imigrantes como comunidades ou grupos, há fortes tensões entre as práticas islâmicas e o secularismo. Alguns dos temas em discussão são: o uso do véu, os imãs, as escolas islâmicas, as mesquitas (tamanho, localização, etc), o fundamentalismo, a radicalização e a blasfêmia.

Na Turquia, apesar de não mais ter uma religião oficial, o Estado controla o Islã através de um órgão oficial - o Diretório Estadual para Assuntos Religiosos (DEAR). Este órgão é supervisionado pelo Primeiro Ministro e tem por competência a nomeação da liderança religiosa turca, bem como pelo controle do treinamento e da educação religiosa. A idéia da formação de uma esfera pública, livre dos símbolos religiosos, tem obtido uma maior relevância para as elites seculares turcas nos últimos 20 anos.

Como se vê, a institucionalização do secularismo na Turquia não envolve uma exclusão, mas um rígido controle da inclusão do Islã na esfera pública. Isto, por si só, já é um grande diferencial com relação à experiência francesa. É através deste gesto de inclusão que a autoridade secular é consolidada no Estado.

Apesar de todo esse controle, no final da década de 80 do século passado, começaram a surgir alguns discursos islâmicos autônomos dentro da esfera pública turca. Com isso, uma nova onda de debates, acordos e contestações se seguiram.

Como se pode perceber, o Islã, atualmente, apresenta-se como um grande problema a ser enfrentado pelo secularismo. A tensão causada por ele está presente tanto em um ambiente que busca excluí-lo da esfera pública como naquele que tenta regular sua inclusão.

4.Islã

O Islã é, ao mesmo tempo, uma religião mundial e um sistema cultural. Enquanto religião, Islã significa paz, sendo que seus seguidores acreditam que Maomé foi o último de uma série de profetas enviados por Deus.

Apesar dos muçulmanos colocarem que existe apenas um único Islã, cada um tem a sua própria visão. Esta pode variar do liberal – aquele que rejeita o uso do véu e que consome bebidas alcoólicas - para o fundamentalista – aquele que mata em função da interpretação literal da letra da lei. Assim, o verdadeiro Islã pode variar entre versões fundamentalista, liberal ou até mesmo secular.

Desde a sua fundação, a religião islâmica tratou de algumas questões políticas: a criação da paz islâmica na Arábia, da comunidade islâmica (umma) com a associação das tribos árabes e do califado para governar após a morte de Maomé. Hodiernamente, conforme as colocações de Bassam TIBI (2001), esta interferência do Islã no sistema político passou a ser uma ideologia, relacionada com a politização dos conceitos e símbolos culturais islâmicos.

Tal movimento (politização do Islã) vem como uma resposta à globalização. Para TIBI (2010, p. 101):

Globalização não se refere apenas ao processo de conexão entre as diferentes partes do mundo, mas também ao mapeamento do mundo em um sistema globalizado. A ‘Revolta contra o Ocidente’ é, distintamente, uma revolta contra este mesmo sistema construído pelas linhas ocidentais. A emergência do Islã político está baseada na re-politicização da religião e no uso instrumental dos seus símbolos culturais para perseguir fins políticos. Esta é a expressão islâmica e uma variável para a ‘Revolta contra o Ocidente’. O Islã político é, em um contexto global, uma articulação desta revolta. Uma interpretação político-religiosa nas sociedades envolvidas, mostra-o como resultado de uma célere mudança social. Deste ponto de vista, o Islã político é também um resultado da falta de acomodação cultural da mudança em termos de esforço necessário para ‘repensar o Islã’, assim como a articulação de uma civilização contra o Ocidente. [04]

Em outras palavras, a doutrina islâmica tem dificuldade de conceber mudanças, necessidade esta que é trazida pelo processo de globalização. Como os fatores que forçam esta transformação são externos ao contexto social, a sociedade islâmica considera-os como ameaças a seu status quo. Com isso, os muçulmanos são "obrigados" a reagirem a esta tendência, já que aderiram a um sistema cultural que, a princípio e por dogma, seria imutável.

Quanto mais rápida a mudança social, maior se torna a indeterminabilidade do ambiente para os indivíduos enquanto sistemas pessoais que vivem neste estado de transição, e mais marcantes é a necessidade da religião em manter a identidade no processo de mudança. Mudança é percebida como uma ameaça, gerando, por consequência, uma aspiração pelo passado. Uma restauração do que foi represado pelo externo e um anseio pelo retorno dos elementos autóctones que se foram marcam uma reorientação paralela do pensamento visando à ação política [05]. (TIBI, 2001, p. 125)

Como resposta a esta ameaça externa, o Islã político passa a atacar o secularismo. Para os fundamentalistas, o secularismo é uma forma de invasão intelectual do mundo islâmico. Em sua visão, seria uma forma de reduzir a religião islâmica a uma mera cultura. Diante de tal processo, há uma veemente oposição a esta idéia por parte dos fundamentalistas, o que torna a politização do Islã a única solução pró-futuro.

Como se vê, a luta do Islã pela permanência de suas tradições confronta-se, diretamente, com o secularismo estatal. Conforme pode ser depreendido, eis a atual tensão por que passa o conceito de "secularismo" na atualidade. Tendo em vista que a questão perpassa os limites geográficos dos estados, apenas o transconstitucionalismo pode trazer respostas definitivas para o problema.

5.Transconstitucionalismo e os limites do secularismo estatal

Diante do movimento que busca encorpar o conceito do secularismo, resta aos irresignados desafiar os limites do controle estatal na seara religiosa através das diferentes instâncias judiciais. Estando-se diante de uma questão de direitos humanos, regulada por instâncias nacionais e transnacionais de jurisdição, fica clara a possibilidade de utilização do transconstitucionalismo para a demarcação definitiva dos limites da regulação estatal nesta seara.

Um dos primeiros casos onde tal questão foi tratada pela Corte Européia de Direitos Humanos foi o caso Dahlab v. Switzerland [06]. No caso concreto, a professora primária A. Dahlab havia sido proibida de dar aulas vestindo o véu islâmico. Sopesando os direitos em questão (o direito da professora de manifestar a sua religião x o direito dos estudantes infantes de serem preservados em um ambiente religioso harmônico), a Corte concluiu que a proibição estabelecida não era desarrazoada.

Interessante notar que, em sua decisão, a Corte Européia reiterou o posicionamento de que os Estados-Membros possuíam uma margem de apreciação na definição do nível de interferência necessária para garantir o secularismo estatal, frente à liberdade religiosa. Tais interferências, no entanto, estariam sujeitas a revisão por parte da Corte Européia, cuja missão seria determinar se as medidas adotadas estavam devidamente justificadas, ao se poder identificar a relevância e suficiência das mesmas em proporcionar o objetivo perseguido.

São justamente estas revisões, procedidas pela corte transnacional, onde são construídos os diálogos necessários para alcançar-se a solução cooperativa definitiva para as questões problemáticas que lhe são apresentadas.

Outro caso emblemático foi Lautsi v. Italy [07]. Nele, discutiu-se se a utilização de crucifixos nas salas de aula de uma escola pública era uma prática contrária ao princípio do secularismo do Estado italiano.

A demandante arguia que, ao utilizar os crucifixos nas salas de aula, o Estado dava à Igreja Católica uma posição privilegiada, que gerava uma interferência indevida da Itália em sua liberdade de consciência e de crença. Além disso, violava-se o direito da demandante em educar os seus filhos em conformidade com as suas convicções morais e religiosas.

Outrossim, tal utilização seria uma forma de discriminação contra os não-católicos. Ao usar os crucifixos em locais públicos, dava-se a impressão que o Estado havia aderido a uma determinada religião.

Por sua vez, o Estado Italiano colocou, entre as suas argumentações, que, apesar da cruz ser um símbolo religioso, ele tem outras conotações. A cruz possui um significado ético que pode ser entendido e apreciado, independentemente de adesão religiosa ou da tradição histórica de qualquer pessoa. Em suma, a mensagem da cruz é humanista, podendo ser lida, independentemente, da dimensão religiosa.

A Corte Européia entendeu que o Estado deveria evitar de impor crenças, mesmo que indiretas, nos locais onde as pessoas são dependentes ou onde elas são, particularmente, vulneráveis. Neste diapasão, as escolas infantis são locais particularmente sensíveis, onde o poder do Estado pode impor crenças em mentes muito jovens que não possuem um senso crítico muito desenvolvido.

Como se vê, a Corte Européia acabou por definir um limite claro para o secularismo italiano. Na visão da Corte, o Estado tem o dever de manter a neutralidade confessional na educação pública, onde o ensino de um pensamento crítico é que deve ser dominante. Ao Estado Italiano, é vedado impor, mesmo que indiretamente, qualquer tipo de crença.

Outra situação aonde o secularismo vem sendo fortemente tensionado é na questão da política de aculturação dos imigrantes nos países europeus, especialmente os islâmicos. Sabe-se que, a partir do ataque terrorista de 11 de setembro, os mulçumanos passaram a ser alvo de uma maior desconfiança do mundo ocidental. Países como a França e a Holanda passaram a ter uma maior preocupação com a integração destes imigrantes.

Digno de nota é a mudança de posicionamento ocorrida na Holanda (MAUSSEN, 2010). A princípio, este país adotava um modelo de ‘diversidade cultural’, onde havia uma política específica de integração dos imigrantes, que eram vistos como uma comunidade ou grupo. Atualmente, esta política multicultural vem sofrendo fortes críticas.

Os novos requisitos para a entrada de imigrantes, naquele país, envolvem o aprendizado sobre as bases da sociedade holandesa e sua língua. Objetiva-se, com isso, a realização de um grande esforço para a adaptação do imigrante aos valores e normas da sociedade holandesa. Como se vê, houve um endurecimento das normas imigratórias, o que vem se tornando uma tônica nos membros da Comunidade Européia.

No meio desta discussão, deve-se destacar o potencial diálogo transconstitucional que pode ser desenvolvido em algumas questões. BARRAS (2010) traz alguns casos em que tal possibilidade resta bastante clara devido ao lobby desenvolvido por algumas organizações civis.

Ela coloca que, na França, após a proibição do uso do véu em espaços públicos pela lei de 2004, houve algumas tentativas de extensão desta regra para escolas primárias e secundárias. Como tal extensão não era prevista pela lei, os membros do Collectif Contre L'Islamophobie en France - CCIF (organização civil que visa combater, na sociedade francesa, a discriminação e o medo ao Islã) começaram a utilizar uma argumentação com base nos direitos humanos para demonstrar tal ilegalidade.

Em um desses casos, a CCIF garantiu o direito de algumas mães islâmicas, que costumavam usar o véu, a participarem de eventos escolares externos. Tal direito havia sido negado em função da aplicação extensiva da referida lei de 2004. A CCIF argumentou que as escolas não tinham base legal para fazer tal proibição, já que essas mulheres não eram nem servidoras públicas e nem estudantes. Com isso, elas poderiam participar destes eventos, independente de qualquer vestuário. Para a CCIF, esta proibição era uma clara violação ao princípio da laïcité, já que este princípio deveria proteger o pluralismo e a liberdade religiosa, tanto na esfera pública como na particular.

A forma de trabalho da CCIF baseia-se, inicialmente, no diálogo. Somente nos casos de insucesso desta prática é que se privilegia a discussão judicial com vistas à resolução formal da questão. Tendo em vista que a argumentação utilizada é baseada nos direitos humanos e que a própria organização tem envidado esforços para interagir junto a outros organismos internacionais, não se há de duvidar que, mais cedo ou mais tarde, um de seus casos chegará à Corte Européia de Direitos Humanos, dando mais um passo para a redefinição transconstitucional dos limites do secularismo.

A Turquia foi parte de um caso onde a utilização do transconstitucionalismo restou mais patente (Kavakci v. Turkey [08]). Em 1999, Merve Kavakci foi a primeira turca eleita pelo Partido da Virtude Islâmica. No momento em que iria tomar posse do seu cargo eletivo, Kavakci foi para o parlamento usando o seu véu. Apesar das normas regulamentares do parlamento turco não proibir nenhum tipo de vestimenta, ela foi expulsa do recinto, antes mesmo de tomar posse. Alegou-se, para tanto, que ela infringiu a legislação secular daquele país, sendo banida da política por 5 (cinco) anos.

Como resposta a esta afronta, Kavacki usou o seu direito de ação na Corte Européia de Direitos Humanos, que decidiu, em abril de 2007, que a Turquia violou o artigo 3º do Protocolo 1 da Convenção de Direitos Humanos Europeu. Tal artigo garante a liberdade de expressão e de opinião do povo na escolha de seus representantes. Em sua decisão, a Corte Européia considerou a pena desproporcional aos objetivos visados: a preservação da natureza secular do sistema político turco.

Pelo teor da decisão, fica patente que a Corte Européia não quis apreciar os limites do secularismo no Turquia. Provavelmente, a Corte não quis interferir em tal assunto, tendo em vista as condições políticas peculiares daquele país (BARRAS, 2010). Isto, por si só, demonstra a sensibilidade da Corte Transnacional em considerar as particularidades do caso concreto e do país membro envolvido, fato este que demonstra, cabalmente, a preocupação com a formação de um diálogo cooperativo entre as diferentes instâncias.

Em outra oportunidade, a mesma Corte Européia, mais uma vez, demonstrou tal sensibilidade, ao decidir o caso Sahin v. Turkey [09]. A celeuma originou-se quando a estudante de medicina Leyla Sahin foi impedida de continuar os seus estudos na universidade de Istambul devido ao uso do véu islâmico. Em sua decisão, a Corte Européia entendeu que as restrições estabelecidas ao uso do véu eram justificadas em função do contexto "especial" daquele país, onde a maioria da população aderia à religião islâmica.

Como se pode perceber, a discussão com base nos direitos humanos fornece um meio interessante para desafiar os limites do secularismo do Estado. Sendo um ponto nevrálgico nos dias atuais, as discussões sobre a efetivação destes direitos apresentam uma ampla rede de proteção, tanto no âmbito nacional como transnacional. É neste ponto que o transconstitucionalismo fornece o ferramental necessário para o estabelecimento de limites claros para o secularismo, através do diálogo construtivo entre as diferentes ordens jurídicas envolvidas (nacionais e transnacionais).

6.Conclusões

Nas últimas cinco décadas, o sistema de proteção internacional aos direitos humanos desenvolveu-se de forma extraordinária. Tal sistema visa à proteção dos direitos dos seres humanos e não dos Estados, tanto no âmbito nacional como internacional.

Claro fica que a sobreposição de Ordens Jurídicas para a salvaguarda de um mesmo conjunto de direitos, acaba por provocar possíveis colisões entre elas. Tendo tal fato em mente, Marcelo NEVES (2009) realizou um estudo aprofundado do tema, propondo como solução a efetivação de um diálogo cooperativo entre os ordenamentos jurídicos envolvidos/entrelaçados. A tal diálogo, ele denominou de transconstitucionalismo.

Assim, a reconstrução do significado das normas constitucionais de um Estado passa a ter uma nova fonte para a sua modernização: as decisões transnacionais ou a solução/experiência de outros Estados que passaram pelo mesmo problema.

Um exemplo típico da efetivação de tal diálogo se dá com a recente discussão sobre o secularismo estatal. Como se sabe, após os últimos ataques perpetrados pelos fundamentalistas islâmicos, os países da comunidade européia endureceram as suas regras seculares.

Em prol de uma maior coesão social, países como França, Holanda, Turquia, Suíça e Alemanha baniram ou buscam banir a utilização do véu islâmico do tipo burca. Tal véu, apesar de significar "modéstia de vestir" na cultura islâmica, passou a ser considerado um dos maiores símbolos do fundamentalismo radical islâmico.

Resta patente a colisão entre a liberdade religiosa e a atuação estatal com vistas a garantir o secularismo. A pergunta que fica no ar é: qual o limite da atuação do Estado no estabelecimento das "fronteiras" do secularismo?

A melhor resposta a ser dada está, justamente, no diálogo transnacional que vem se desenvolvendo na Europa. Tal diálogo é uma verdadeira instanciação do transconstitucionalismo, que vem auxiliando, de forma decisiva, no estabelecimento dos limites da separação entre o Estado e a Religião.

De acordo com as leituras dos casos apresentados, vê-se que a Corte Européia de Direitos Humanos tem tido a preocupação de atentar para as peculiaridades dos Estados envolvidos. Isto tem facilitado a sua aceitação e demonstra a correção do pensamento do autor pernambucano Marcelo Neves.

REFERÊNCIAS

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BHARGAVA, Rajeev. Political secularism. Disponível em . Acessado em 21/09/2010.

BARRAS, Amélie. Using rights to re-invent secularism in France and Turkey. Disponível em . Acessado em 19/09/2010.

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TIBI, Bassam. Islam between culture and politics. Londres: Palgrave, 2001.

Notas

1. Livre tradução de "rests on three inextricably linked values: freedom of conscience, equality in law of spiritual and religious persuasions, neutrality of the political authorities".

2. Livre tradução de "In a secular state, no official status is given to religion. No religious community can say the state belongs exclusively to it. No one is compelled to pay tax for religious purposes or to receive religious instruction. No automatic grants to religious institutions are available".

3. Livre tradução de "The privileged place for meetings and exchanges, where everyone can come together bringing the best to the national community. It is the neutrality of this public space that enables the different religions to harmoniously co-exist".

4. Livre tradução de "Globalisation does not only refer to the process linking the diverse parts of the world to one another, but also to the mapping of the world into one globalised system. The ‘Revolt against the West’ is distinctly a revolt against this very system designed along Western lines. The emergence of political Islam is based on a re-politicisation of religion and on the instrumental use of its cultural symbols in pursuit of political ends. This is the Islamic expression and variety of the ‘Revolt against the West’. Political Islam is in the global context an articulation of this revolt. An interpretation of political religion in the societies involved, shows it as a result of rapid social change. From this point of view political Islam is also the result of the missing cultural accommodation of change in terms of the effort needed to ‘Rethink Islam’, as well as the articulation of a civilisation-awareness against the West."

5. Livre tradução de "The more rapid the social change, the more indeterminable the environment becomes for individuals as personal systems living in a state of transition, and the more marked the need for religion to maintain identity in the process of change. Change is perceived as an out-and-out threat, and a longing for the past is cultivated as a result. A restoration of what has been repressed by the alien and a yearning for a return of overlaid indigenous elements, underlie a parallel reorientation of thought aimed at political action".

6. Disponível em < http://baer.rewi.hu-berlin.de/w/files/l_adr/dahlab_echr_2001_4239398.pdf>

7. Disponível em

8. Disponível em < https://wcd.coe.int/wcd/ViewDoc.jsp?id=1115449>.

9. Disponível em < http://portal.coe.ge/downloads/Judgments/LEYLA%20SAHIN%20v%20TURKEY.pdf>.

Autor
Bruno de Oliveira Lira é Advogado, Especialista em Direito Processual e Mestrando em Ciência Jurídica pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
LIRA, Bruno de Oliveira. O transconstitucionalismo como instrumento de diálogo entre o Secularismo e o Islã. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3048, 5 nov. 2011. Disponível em: . Acesso em:

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