Recentemente, numa iniciativa louvável, foi instaurada no Estado de Pernambuco a "Comissão Estadual da Memória e da Verdade" com vistas a passar à limpo os crimes praticados pelo regime ditatorial de 1964 na região. Um dos casos apurados é o do sequestro, tortura e assassinato do Padre Henrique, professor e assessor do então Arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara. Segue o comovente depoimento do Padre Ernanne Pinheiro sobre o acontecido:
Depoimento
sobre o trucidamento do Padre Antônio Henrique Pereira Neto à
Comissão da Verdade e da Memória Dom Helder Câmara – Pernambuco
Exmo.
Sr. Dr. Fernando Coelho, presidente da Comissão, Exmo. Sr. Dr. Pedro Eurico, relator
do caso Padre Henrique na Comissão, Demais membros da Comissão da Verdade e da
Memória, Meus Senhores e minhas Senhoras,
Meu
depoimento perante esta significativa Comissão é eclesial. No período, eu
exercia o cargo de Vigário Episcopal dos Leigos na Arquidiocese de Olinda
Recife e como tal fui nomeado pelo arcebispo Dom Helder Câmara, na missa de
corpo presente, o sucessor do padre Henrique para dar continuidade aos trabalhos
da Pastoral de juventude.
Vou
tentar organizar minha reflexão em cinco partes:
1.
Quem era o Padre Henrique e como realizava o trabalho pastoral;
2.
O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período;
3.
O bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique;
4.
A morte do padre Antônio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife;
5.
As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes.
1. Quem era Padre Antônio Henrique Pereira Neto e seu trabalho pastoral
Nasceu
no Recife aos 28 de outubro de 1940. Fez sua formação sacerdotal em Olinda, João
Pessoa, com estudos de psicologia nos Estados Unidos. Foi ordenado sacerdote
aos 25/12/1965, poucos dias após o término do Concílio Vaticano II.
Desde
os tempos de Seminário, manifestava uma vocação para trabalhar com a juventude.
Vários grupos de secundaristas e universitários recebiam sua orientação.
Henrique defendia uma proposta metodológica baseada no seguinte princípio: o
final do curso médio e o início do curso universitário é um momento propício
para ajudar os jovens a se encaminhar para a vida.
Padre
Henrique já tinha a experiência da Juventude Estudantil Católica (JEC); mas
para melhor se preparar para sua missão, participava de encontros de pastoral
de juventude a nível regional, nacional e latino-americano. Para fundamentar cada
vez mais seus pressupostos apostólicos, dedicava bastante tempo aos estudos,
sobretudo das Sagradas Escrituras e da Liturgia. Como responsável da Pastoral
da Juventude da Arquidiocese reservava suas tardes para atender os jovens que o
procuravam para conversar e discutir temas de interesse juvenil no próprio
prédio do secretário arquidiocesano – o Juvenato Dom Vital. Também atendia no
Colégio Marista do Centro, em parceria com os irmãos maristas no trabalho de
formação dos jovens.
Solicitei
ajuda para o meu depoimento a membros dos grupos acompanhados pelo padre
Henrique, perguntando: como funcionava a metodologia do grupo e qual o papel do
Padre Henrique no relacionamento com os jovens. Recebi um depoimento
esclarecedor, através de Lavínia Lins, após trocar ideias com outros/as colegas:
“...Éramos naquela época, amigos e
conhecidos, (alguns filhos de pais que eram amigos), que se encontravam para
conversar, “paquerar”, formar banda de música (“conjunto”, na época), organizar
quadrilhas no São João. Henrique (assim gostava de ser chamado) havia aparecido
por ali porque “um dos jovens estava tendo problemas com os pais” e ele intermediava
diálogos entre eles. Os meninos então começaram a se encontrar com ele
(Henrique) com regularidade. As meninas souberam e se interessaram.
Passamos a nos reunir às 3ª feiras à
noite, para conversas (a “reunião”) e domingos à tarde para a missa e debates.
Às vezes os pais iam à reunião e um diálogo entre gerações era mediado por ele.
Com cada um de nós Henrique estabelecia uma relação pessoal, de intimidade e
conhecimento. Chegou a aplicar alguns testes psicológicos (como o desenho de
árvore e da família) buscando aproximar-se, saber mais sobre cada um de nós.
Sua postura era de aceitação (tão
importante nesta idade) e sua linguagem era a nossa. Era jovem também.
Favorecia as relações e a exposição sadia de cada um no grupo. Nossas vozes
eram ouvidas e repercutiam. Sentíamos pertencendo a algo que nós mesmos
criávamos. Era com este sentimento que estávamos sendo direcionados, de forma muito
inteligente, a não nos envolver com álcool e drogas e a repensar temas que nos
cercavam, como: as relações interpessoais, com outras gerações, temas sociais
como a prostituição, etc.
Ao
mesmo tempo nos oferecia a Igreja Católica, não apenas na vivência dos
encontros, mas através de uma missa descontraída, onde se tocava violão e
cantava. Cada etapa era explicada. A missa agora era “prazerosa”. Um clima de
informalidade e participação, incluindo as nossas realidades na própria celebração.
Tudo era muito real e próximo, assim como as relações que se estabeleciam com
amizades que duram até hoje, apesar da distância, namoros que evoluíram para casamentos
que se mantêm. Henrique nos mostrava uma forma nova de nos relacionar conosco
mesmos, com o outro, com o mundo”.
2. O contexto da
Igreja em Olinda e Recife no período
Padre
Henrique assimilou com carinho as perspectivas da Igreja do Concílio Vaticano
II, em clima de diálogo com o mundo, em clima de ecumenismo. Era um jovem que
vivia a primavera da Igreja em renovação. E
a nomeação inesperada de Dom Hélder Câmara para o Recife, exatamente nesse período,
lhe era providencial e tornou-se para o nosso jovem padre um modelo a imitar e
uma corresponsabilidade a exercer.
Dois
fatores significativos acentuavam a importância primordial da presença de Dom Helder
no Nordeste do Brasil no momento: a) O recente golpe militar de 31 de março de
1964; b) O Concílio Vaticano II em pujante evolução na perspectiva de renovar a
Igreja e melhor servir no mundo atual (duas sessões tinham acontecido).
Diante
do regime militar, eram já conhecidas suas posições, tanto pela atuação na
cidade do Rio de Janeiro como em nível nacional - em defesa dos direitos dos
pobres, da democracia e da liberdade de expressão. Durante o Concílio Vaticano
II, exercendo, no período, a missão de Secretário Geral da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB) lhe foi oferecida a possibilidade de ser, em breve,
missionário do mundo, como peregrino da justiça e da paz, o que, de fato,
aconteceu e o exerceu com maestria.
Construiu
imediatamente um relacionamento especial de amizade durante o Concílio com os
Bispos que tinham maior sensibilidade para a problemática do então chamado
“Terceiro Mundo”. Neste contexto, surge o famoso grupo de Bispos, provenientes de
todos os Continentes, que se encontrava para refletir sobre a missão da Igreja
junto aos pobres e a necessidade da Igreja ser sinal do Cristo pobre. Estes
fatores históricos tornavam Dom Hélder um homem de características excepcionais
para assumir o pastoreio numa região sofrida como o Nordeste, numa cidade cheia
de contrastes sociais como o Recife, num momento político específico.
Dom
Helder assumia o seu pastoreio a 12 dias do golpe militar de 1964. A cidade do Recife
era palco de numerosas prisões, exílios, por motivos políticos. O medo invadia
a população. Havia um clima de sobressalto. A cada momento poderia haver novas
prisões, novos pichamentos...
Dom
Hélder, logo na mensagem de chegada, abre o coração aos seus diocesanos,
procurando desarmar os espíritos. Fez uma saudação ao povo, ao seu povo, logo
ao chegar ao Recife, permeada de liberdade evangélica, embebida de sabor
profético – anúncio e denúncia, de teor missionário. Apresenta-se como o bispo
de todos ao explicitar sua postura pessoal e suas prioridades:
“Ninguém
se escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas como indignas e
pecadoras. Quem não é pecador? Quem pode jogar a primeira pedra? Nosso Senhor,
acusado de andar com publicanos e almoçar com pecadores, respondeu que justamente
os doentes é que precisam de médico. Ninguém se espante me vendo com criaturas
tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou
da oposição, antirreformistas ou reformistas, antirrevolucionárias ou
revolucionárias, tidas como de boa ou de má fé. Ninguém pretenda prender-me a
um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo
que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a
todos, absolutamente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo
excluir do diálogo fraterno”.
3. O bárbaro
trucidamento do Padre Antônio Henrique
Padre
Antônio Henrique foi formado na escola do seu Pastor Dom Helder. Também era
fruto tanto da renovação da Igreja em pleno Concílio Vaticano II como fruto do
compromisso com o mundo estudantil, ainda em ebulição, contra a ditadura
militar. Henrique tinha consciência de que corria risco. Estava comprometido
com as causas dos estudantes universitários, ainda muito politizados, e fazia
seu trabalho pastoral em sintonia com a dimensão profética da Arquidiocese com
contínuas denúncias contra as arbitrariedades da ditadura milita; isto o levava
a viver em vigilância.
Seu
bárbaro trucidamento aconteceu no dia 27 de maio de 1969. Na tarde do dia 26 de
maio ainda recebeu vários jovens no Juvenato. Por volta das 19 horas saiu para uma
reunião no bairro de Parnamirim, onde permaneceu com os jovens acompanhados dos
seus pais, até às 22,30 horas. Conforme depoimento do grupo de Lavínia Lins já
citado, após a última reunião quando o Padre Henrique entrou num carro
desconhecido: “Nosso último encontro se deu para que os pais e os filhos
pudessem discutir tendo Henrique como intermediador. O clima era agradável e seguro.
Saí com meus pais e no Largo do Parnamirim, avistei Henrique pela última vez.
Passamos de carro e tentei acenar para ele. Sem nos ver, entrava numa “rural”
verde e branca, me parece. Dois homens estavam fora do carro, de porta aberta,
junto com ele. Outro dirigia. Depois foi apenas a notícia”.
Na manhã seguinte, as autoridades eclesiásticas foram advertidas de que havia
um corpo num capinzal ao lado da Universidade, reconhecido como o corpo do
padre Henrique. Fora transportado para o necrotério público onde Dom Helder
logo acorreu. Outros padres, inclusive Dom Basílio Penido, o abade do mosteiro
de São Bento, médico, também se aproximaram e aí permaneceram até a conclusão
da necropsia. O sacerdote tinha sido amarrado, arrastado, recebeu três tiros na
cabeça e algumas torturas; todos os golpes atingiram exclusivamente a cabeça e
o pescoço, conforme atesta o próprio Dom Basílio Penido.
O
corpo foi velado na matriz do Espinheiro, onde aconteceram duas celebrações –
uma às 21 horas do mesmo dia e outra na manhã seguinte antes de partir para o
cemitério. Nesse contexto, foi divulgada uma nota do Governo Colegiado da
Arquidiocese, expressando a dor da arquidiocese, o sofrimento dos jovens em
plena comoção, dos familiares perplexos.
Como
a Igreja local não dispunha de meios de comunicação viáveis para divulgar o acontecimento
e a imprensa local estava sob censura, o texto da Nota, após pronunciada, foi mimeografado
e distribuída pelas paróquias, pelos colégios e universidades, fato que fez
acorrer uma grande quantidade de pessoas para a celebração e, logo depois, para o enterro. A Nota foi redigida e discutida com a participação de 40 padres,
vários deles membros do Conselho Presbiteral.
A
Nota do Governo Colegiado da Arquidiocese de Olinda e Recife :
1. Cumprimos o pesaroso dever de comunicar
o bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique Pereira Neto, cometido na
noite anterior, 26 de maio, nesta cidade do Recife;
2. Aos 29 anos de idade e 3 anos de
sacerdote, o padre Henrique dedicou a vida ao apostolado da juventude,
trabalhando sobretudo com os universitários. Até às 22,30 horas de ontem,
segundo o testemunho de um grupo de casais, esteve reunido, em Parnamirim, com
pais e filhos, na tentativa que lhe era tão cara, de aproximar gerações;
3. O que há de particularmente grave no
presente crime, além dos requintes de perversidade de que se reveste (a vítima
foi amarrada, golpeada no pescoço e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática
de que o atentado brutal se prende a uma série pré-estabelecida e objeto de
ameaças e avisos;
4. Houve, primeiro, ameaças escritas em
Edifícios, acompanhadas por vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de
Manguinho recebeu numerosas inscrições. A Sede do Secretariado Arquidiocesano e
Regional nordeste II foi alvejado. A residência do Arcebispo, na igreja das Fronteiras,
alvejada e pichada.
5. Vieram, depois, ameaças telefônicas,
com o anúncio de que já estavam escolhidas as próximas vítimas. A primeira foi
o estudante Cândido Pinto de Melo, quartanista de engenharia, presidente da
União dos Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula seccionada.
A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo consistiu em exercer apostolado
entre os estudantes.
6. Como cristãos, e a exemplo de Cristo
e do proto-mártir Santo Estevam,
pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do mestre: “Eles
não sabem o que fazem”.
7. Mas julgamo-nos no direito e no dever
de erguer um clamor para que ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte.
8. Que o holocausto do padre Antônio Henrique
obtenha de Deus a graça da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a
conversão dos seus algozes.
Recife, 27 de maio de 1969
+ Dom Helder, arcebispo de Olinda e
Recife,
+Dom José Lamartine, Bispo Auxiliar e
Vigário Geral, Monsenhor Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal, Monsenhor Arnaldo
Cabral, Vigário Episcopal, Monsenhor Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal
O
percurso da Igreja do Espinheiro em direção ao cemitério, sobretudo na Avenida
Caxangá, parecia um campo de guerra. O cortejo fúnebre foi crescendo em
população durante a caminhada; contou com a presença de mais ou menos 8 mil
pessoas. Também aconteceram alguns incidentes desagradáveis. Invasão do cortejo
por policiais para prender personalidades como o deputado federal cassado
Oswaldo Lima Filho presente ao enterro e a invasão do cortejo para mandar tirar
as faixas conduzidas pelas lideranças estudantis: “Os militares mataram Padre
Henrique”.
O
enterro aconteceu no cemitério da Várzea, a pedido da família. Lá chegando, o
recinto estava totalmente cercado por forças militares, o que impedia qualquer
manifestação. Era plano dos estudantes expressarem sua indignação juvenil
diante do que eles estavam presenciando, o que Dom Helder tinha evitado que
acontecesse no interior da Igreja do Espinheiro.
Dom Helder acompanhou com muita unção
todo o cortejo e foi perspicaz em perceber o quadro à chegada do cemitério.
Procurando evitar possíveis confrontos, subiu numa cadeira, acenou para a
população com um lenço branco em sinal de paz, rezou um Pai Nosso com a população,
deu uma benção e solicitou que todos se retirassem em silêncio. Um silêncio
piedoso, mas extremamente gritante.
4. A morte do
padre Antônio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife
A
missa de 7º. dia foi o momento forte para a assimilação do trágico ocorrido. A
Arquidiocese, tentando evitar fatos indesejáveis, preferiu descentralizar a
celebração; preparou um texto litúrgico unificado para orientação de todas as
paróquias e centros religiosos. Foi a ocasião para oferecer os critérios cristãos
para avaliar o trágico acontecimento. Sua introdução dizia o seguinte:
“Meus irmãos, há sete dias precisamente
Antônio Henrique, presbítero da Igreja de Deus no Recife, foi trucidado por
causa do Evangelho de Jesus Cristo. Reunidos, hoje aqui, não são pensamentos de
ódio ou de vingança, não é a sede de mais sangue que nos movem e nos irmanam.
São pensamentos de paz. Paz que brota da fé. Fé que fala mais alto do que a
perversidade dos maus. Fé, que nos diz que padre Antônio Henrique está com
Jesus, no Reino dos vivos. Fé que nos faz apreciar a importância do seu
holocausto e ouvir os apelos de Deus a continuarmos o trabalho que padre
Henrique começou. Imploremos a misericórdia de Deus sobre todos nós, que
vivemos esta hora triste e angustiante; sobre a família do padre Henrique; sobre
o mundo que mata aqueles que lhe anunciam a verdadeira paz; sobre os assassinos
do padre Antônio Henrique”.
Na
missa de 30º. dia, a homilia de Dom Helder amplia a reflexão numa leitura
religiosa do trágico acontecimento em sua relação com o momento político. Começou
a Homilia com uma pergunta:
“O que diria o nosso Padre Henrique se
Deus lhe permitisse que ele mesmo pregasse a homilia desta Missa? Que
ponderações teria a fazer, que sugestões a apresentar, falando-nos de junto de
Deus, onde nossa fé espera que ele se ache? Salvo engano, começaria repetindo a
palavra de Nosso Senhor, em sua paixão:” Não choreis sobre mim, mas sobre vós e
vossos filhos” (Lc 23,28)”.
E
apresenta “Apelo que chega da eternidade”:
-
da eternidade, de junto de Deus, ele apela para todos os que acusam a Igreja no
Nordeste, de subversão e comunismo. Comparem o que estamos pregando em nossa
região com o Ensino Social da Igreja, ainda recentemente expresso por Paulo VI
em Genebra: estamos rigorosamente dentro da “Populorum Progressio” e das conclusos de Medellin;
-
da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Governantes que, sem perda de
tempo, partam para a reforma de base e, de modo particular, para a reforma
agrária. Mas adverte que será impossível qualquer mudança autêntica de
estrutura através de reforma conduzida de cima para baixo. Ou o Povo participa
como agente de mudança, ou não haverá promoção humana e social;
-
da eternidade, de junto de Deus, ele pede aos Responsáveis pela ordem pública
que, quanto antes, terminem as medidas de exceção que estão tornando impossível
o uso de processos democráticos da parte dos cidadãos em geral, e especialmente
dos estudantes, e dos trabalhadores. A situação presente cria clima propício a arbitrariedades,
e abusos, a crimes (e não seria difícil apontar casos, de que são tristes
exemplos os esquadrões da morte).
A
situação presente impele os mais impacientes para a clandestinidade, a radicalização
e a violência. Estas afirmações do nosso Arcebispo Dom Helder Câmara levam-nos
a considerar que a morte do padre Henrique, por motivações sócio-políticas, mas
com convicções cristãs sólidas, não era uma exceção na América Latina. Estávamos
rodeados de densa nuvem de testemunhos de fé (cf. carta aos Hebreus 12,1).
Nos anos das ditaduras na América Latina foram publicadas muitas reflexões
sobre o conceito de martírio, valorizando os que tombaram numa luta pela
democracia, em busca da justiça, motivados pela fé, sabendo que poderiam pagar
com a vida sua doação.
O padre jesuíta Karl Rahner, considerado
o grande teólogo do século XX, fala sobre a necessidade de ampliação do
conceito clássico de martírio. Propõe que o termo martírio seja aplicado tanto
para a morte suportada pela fé como pela morte que tem sua origem num
compromisso e numa luta ativa, assumidos pela mesma fé .
5. As
repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes
A
Igreja local de Olinda e Recife não ficou isolada nesse sofrido momento.
Recebeu solidariedades diversas e significativas do Brasil e do exterior.
Confortadora para todos, mas sobretudo para Dom Helder, foi a visita imediata
do Secretário Geral da CNBB, Dom Aloísio Lorscheider.
Chegaram
Mensagens do Santo Padre Paulo VI, do Secretário de Estado do Vaticano, da
Presidência do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), da Nunciatura
Apostólica e tantas outras.
O
Governador do Estado da época, Sr. Nilo Coelho, nomeou uma Comissão de
Inquérito e entregou sua presidência ao Magistrado, juiz da 11ª. Vara, o Dr.
Aloísio Xavier e para desempenhar as funções de Procurador nomeou o Dr. Rorinildo da Rocha Leão.
Logo
no dia 11 de junho de 1969, o Dr. Aloísio Xavier, segundo publicou o jornal
Diário de Pernambuco, deu um excelente testemunho em favor da conduta do
sacerdote, afirmando com palavras claras e incisivas que valeu como uma resposta
a todas as insinuações veiculadas por órgãos da imprensa. Convidado a depor
sobre o assassinato do Padre Antônio Henrique, na Comissão Judiciária, em abril
de 1975, Dom Helder solicitou a anexação aos autos do processo sua declaração. Ele
relembra em detalhes os acontecimentos de maio de 1969, a nota do Governo
Colegiado da Arquidiocese, o caminhar da Comissão Judiciária, as fases do
processo e repete perguntas publicadas em Nota, no dia 29 de Agosto de 1969,
fazendo sérias considerações (importante de serem explicitadas mesmo se algumas já atendidas).
Fala
Dom Helder na sua declaração:
“Como esquecer a coincidência de, poucas
horas antes do que ocorreu a Cândido Melo, ter sido alvejado o Juvenato Dom
Vital (local em que trabalhava o padre Antônio Henrique), havendo os
assaltantes – segundo depoimento de duas testemunhas citadas no Relatório da
Comissão Judiciária - (parte final do item V), disparado suas armas, aos gritos
de CCC? Como esquecer que, segundo o mesmo Relatório, no mesmo item, foi o CCC
quem ameaçou o Padre Henrique pelo telefone?”
A
nota continuava perguntando:
“Porque não se faz uma devassa em regra
sobre este famigerado CCC? Como e quando foi organizado? Quem o financia e quem
o dirige? Quem são os seus sócios? Onde tem sua sede? Quais os objetivos e
quais os feitos desta versão do Ku-Klux-Kan? Houve interesse efetivo em apurar a
passagem do CCC pela Universidade Rural? E pela Universidade Católica? E pelos
Diretórios Acadêmicos da Escola de Engenharia e da antiga Faculdade de
Filosofia, ambas da Universidade Federal de Pernambuco? E pela residência do Arcebispo,
duas vezes alvejada e objeto de inscrições com ameaças? E pelo Palácio de
Manguinho? Quais os resultados do Inquérito sobre o alvejamento do Juvenato Dom
Vital onde funcionam a Cúria Arquidiocesana e os Secretariados Arquidiocesanos e do Regional da CNBB?”
Por
que voltar ao caso neste momento? A indignação ética dos brasileiros/as e, em
especial, dos pernambucanos/as, exige que fato como esse agora relatado seja conhecido, refletido e avaliado para que nunca mais volte a acontecer no nosso
país – Nunca Mais.
Ao
mesmo tempo, é sumamente importante as novas gerações conhecerem seus
verdadeiros heróis – os que deram a vida na busca de mais vida. E numa leitura
cristã, repetimos o que diziam os primeiros cristãos:
“O sangue dos mártires é semente de
novos Cristãos”.
Está de parabéns a Comissão da Verdade e da Memória de
Pernambuco!
Recife,
16 de agosto de 2012.
Padre
José Ernanne Pinheiro, Assessor da CNBB.
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